Isenções fiscais aos agrotóxicos alimentam o agronegócio, enquanto seu uso como arma química expulsa comunidades e destroi territórios.
A dinâmica colonial entranhada na origem do Brasil, esta que se manifesta nas relações, nas formas de ser e não ser no mundo, na negação do acesso a uma vida digna, se manifesta também, evidentemente, no acesso à terra, à água e ao alimento que temos disponível para consumo, como também em relação a quantidade de veneno que somos obrigados a ingerir por dia. Assim como o modelo econômico imposto pelo norte global, também se consolidou o processo de exploração da terra. A precarização, violência e expulsão dos povos tradicionais e dos agricultores familiares do campo segue em ritmo acelerado. Os últimos anos deixaram ainda mais evidentes os planos de avanço do agronegócio no Brasil.
No dia 11 de janeiro é celebrado o Dia do Combate à Poluição por Agrotóxicos, estabelecido pelo Decreto nº 98.816, que regulamenta a Lei n° 7.802, de 1989, a qual dispunha “sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins, e dá outras providências”.
Em 2002 foi aprovado o Projeto de Lei 6.299, também conhecido como o “Pacote do Veneno”, que visava alterar a Lei Federal 7.802/89 a fim de flexibilizar a autorização e registro de agrotóxicos no país, permitindo a liberação de agrotóxicos mutagênicos, carcinogênicos e de alta toxicidade. Em 2018 o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA/SAS/MS) publicou uma nota contra o PL 6.299, que dentre suas propostas, indicava pela “mudança do nome ‘agrotóxicos’ para ‘defensivo fitossanitário’ e a exclusão dos órgãos responsáveis por avaliar os impactos sobre a saúde e o meio ambiente (ANVISA e IBAMA) da avaliação e do processo de registro dos agrotóxicos no Brasil”. Em nota, o INCA destacava alguns dos efeitos dos agrotóxicos à saúde humana: “intoxicações crônicas, caracterizadas por infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, manifestada através de distúrbios cognitivos e comportamentais e quadros de neuropatia e desregulação hormonal, ocorrendo também em adolescentes, causando impacto negativo sobre o seu crescimento e desenvolvimento dentre outros desfechos durante esse período”. Um estudo divulgado no final de 2024 por pesquisadores do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos (NPDM), da Universidade Federal do Ceará (UFC) revelou que a utilização de agrotóxicos aumenta em 27 vezes as chances de desenvolver câncer.
Outra pesquisa, intitulada “Exposure to Pesticides and Breast Cancer in an Agricultural Region in Brazil”, publicada na Environmental Science & Technology, demonstrou que mulheres que vivem na região sudoeste do Paraná, caracterizada pelo uso intensivo de agrotóxicos, possuem em torno de 60% de chances de desenvolver câncer de mama, com uma incidência de diagnósticos da doença 41% superior à taxa média do Brasil, de acordo com dados publicados pelo site do MST.
O “PL do Veneno” seguiu sendo aprovado pelo Senado em 2022 e sancionado pelo presidente Lula em 2023 com vetos. De acordo com matéria da Agência Senado, a lei aprovada modifica prazos e regras para aprovação e venda de agrotóxicos. O texto destaca que na proposta original a lei dava ao Ministério da Agricultura “a competência exclusiva para registros de pesticidas, produtos de controle ambiental e afins”. Apesar de este ter sido um dos dispositivos vetados na lei aprovada, o Ministério da Saúde e o Ministério do Meio Ambiente não têm poder para reprovar o registro de algum agrotóxico que não consideram adequado, já que funcionam apenas como órgãos consultivos. O texto menciona, ainda, que o prazo para inclusão e alteração de registro dos agrotóxicos foi encurtado para no máximo dois anos. Outro ponto importante aprovado nesta lei se refere à proibição de registro de produtos com substâncias consideradas cancerígenas ou que induzam deformações, mutações e distúrbios hormonais, o que agora é permitido.
Nos últimos anos o uso de agrotóxicos teve um salto assustador, de acordo com a professora e pesquisadora Larissa Bombardi em entrevista para o DW Brasil. Em seu livro “Agrotóxicos e colonialismo químico”, publicado pela editora Elefante, analisado em resenha homônima de Anderson Bertholi, a autora denuncia as grandes corporações de tratarem os países do Sul Global como “colônias”, o que fica evidenciado nos números de produção e venda de agrotóxicos em 2020: “a União Europeia (com 13,6 bilhões de dólares em vendas) e a China (com 8 bilhões de dólares em vendas) se sobressaem, seguidas pelos Estados Unidos, que comercializam 4,5 bilhões de dólares”. Ainda em entrevista à DW, Larissa sugere a suspensão da exportação de agrotóxicos que são proibidos em países europeus, como é o caso de três dos dez agrotóxicos mais utilizados no Brasil. Segundo a autora, 80% da venda de agrotóxicos em todo o mundo é representada por seis empresas, como a Bayer e a Basf.
Veneno na porta de casa
A utilização de agrotóxicos como arma química para expulsão de povos tradicionais e de camponeses/as de seus territórios tem se demonstrado cada vez mais explícita. Em publicação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) sobre os dados parciais dos conflitos no campo brasileiro, levantados durante o 1º semestre de 2024 pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (Cedoc), ficou constatado que a violência por meio da contaminação por agrotóxicos saltou de 19 ocorrências em 2023 para 182 em 2024.
Destes, 156 casos ocorreram no Maranhão, local onde a pulverização aérea de veneno tem sido usada com grande intensidade. Em matéria do Repórter Brasil, comunidades relatam que drones têm sido usados para intimidar e expulsar os agricultores familiares e que as denúncias não estão sendo investigadas pelo poder público.
A Rede de Agroecologia do Maranhão (RAMA), em colaboração com a Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultores Familiares do Estado do Maranhão (FETAEMA), o Laboratório de Extensão, Pesquisa e Ensino de Geografia (LEPENG/UFMA) e o Grupo de Estudos sobre Dinâmica Territorial (GEDITE/PPDSR/UEMA), enviou um relatório intitulado “Territórios Vitimados Diretamente por Pulverização Aérea de Agrotóxicos no Maranhão” para o Relator Especial da ONU sobre Substâncias Tóxicas e Direitos Humanos. O texto destaca que a pulverização tem atingido diretamente comunidades tradicionais, quilombolas, assentamentos da reforma agrária e terras indígenas. Dados coletados em estudo realizado por estas entidades, publicados pelo Repórter Brasil, evidenciaram que “228 comunidades em 35 municípios do estado denunciaram contaminação por pesticidas entre janeiro e outubro de 2024. Do total, 214 casos (94%) correspondem a ataques por drones”.
Em outubro de 2024 ataques à comunidade Yvyju Avary, da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavira, do povo Avá-Guarani, localizada entre os municípios de Guaíra e Terra Roxa, no oeste do Paraná, ganharam repercussão após caminhões e tratores passarem por cima das plantações e pulverizarem agrotóxicos próximo às casas da comunidade, causando intoxicação em crianças e destruindo o que a comunidade havia plantado.
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Em 2021, uma ação semelhante foi filmada pelos Ava-Guarani da aldeia Yva Renda, município de Itaipulândia, no Oeste do Paraná.
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Em 2019, o mesmo aconteceu no Mato Grosso do Sul, na comunidade Laranjeira Nhanderu.
Conversamos com Fernanda Savicki de Almeida, pesquisadora da área de Saúde e Ambiente da Fiocruz Ceará, ex-presidenta da Associação Brasileira de Agroecologia, atualmente co-coordenadora do GT contra os agrotóxicos e transgênicos, que também faz parte do grupo operativo da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.
Fernanda destaca que o estado do Maranhão, por fazer parte do projeto de expansão agrícola MATOPIBA, além de possuir muitas comunidades tradicionais e da agricultura familiar articuladas contra o avanço do agronegócio sobre os territórios, tem sofrido muito com os impactos deste enfrentamento neste momento. Fernanda, que é agrônoma, menciona que no Ceará, estado em que atua atualmente, a pulverização com drones tem sido utilizada desde dezembro de 2024, a partir da flexibilização da Lei Zé Maria do Tomé, que proibia a pulverização aérea de agrotóxicos, lei exclusiva do Ceará, que até então era considerado um estado à frente no Brasil em relação a políticas públicas na perspectiva da saúde humana e do cuidado ambiental. Por outro lado, a pesquisadora destaca que a chegada dos agrotóxicos à Amazônia tem sido devastadora, trazendo à tona a discussão sobre a AMACRO, região que abrange municípios dos estados de Amazonas, Acre e Rondônia, compondo um projeto de desenvolvimento agrícola aos moldes do MATOPIBA. “É um ano de COP do clima, a gente está discutindo justamente as questões sobre dar visibilidade para a Amazônia e a situação da Amazônia é essa”, finaliza.
“O agronegócio só é lucrativo, porque a gente banca”
A isenção de impostos nacionais para a comercialização de agrotóxicos atingiu, no ano de 2024, o valor de 10 bilhões de reais, em contrapartida ao aumento extensivo de cânceres de alta complexidade, os quais são onerosos para o SUS, que enfrenta o corte de investimentos a partir da PEC do Teto de Gastos de 2016. Falando em isenções, no final do ano passado a Receita Federal divulgou a Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades de Natureza Tributária (Dirbi), conforme publicado pelo Brasil de Fato. “Ao todo, a União concedeu mais de R$ 97 bilhões em isenções fiscais a quase 50 mil empresas de diversos ramos. Entre os setores mais beneficiados, os adubos e fertilizantes receberam R$ 14,95 bilhões em renúncias fiscais, enquanto os agrotóxicos deixaram de pagar mais de R$ 10 bilhões em impostos. Já a cadeia da soja teve um volume de R$ 2,9 bilhões em tributos não pagos”, somando cerca de R$ 30 bilhões em isenção fiscal para o agronegócio entre janeiro e agosto de 2024. “Sem o Estado incidindo sobre o setor agropecuário, o nosso agronegócio não seria tão desenvolvido”, menciona Fernanda Savicki de Almeida. Ela ainda ressalta que se esse recurso fosse destinado para o desenvolvimento de tecnologia, em pesquisa, em isenções fiscais e subsídios de financiamento para a agroecologia, certamente seríamos um planeta agroecológico: “a gente alimentaria facilmente a nossa população, apenas com produtos, com alimentos de verdade, com alimentos agroecológicos”, finaliza.
Responsabilidade coletiva
É possível escolher não sofrer com as consequências da utilização de agrotóxicos? Para Fernanda, o impacto dos agrotóxicos, apesar de ser mais direto na vida das comunidades tradicionais e de famílias da agricultura familiar, se estende a toda e qualquer pessoa exposta, por exemplo, ao fumacê nas cidades, em municípios que possuem produção ou distribuição de agrotóxicos como agropecuárias, dentre outros. “Não é uma questão de escolha, também cabe a nós que não estamos no campo, que estamos na cidade ou que estamos longe dessas questões, entender que isso também nos afeta de diversas maneiras, mas especialmente porque está mais do que comprovado que os agrotóxicos estão no nosso cotidiano, seja na água, seja no alimento que a gente consome”, destaca.
A agrônoma mencionou a importância de estarmos atentos ao que está sendo discutido neste âmbito, citando o 3º Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), que regulamenta a lei de mesmo nome. Segundo ela, dentro do plano, um dos projetos é o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (PRONARA), que propõe medidas que reduzem e mitigam algumas das consequências dos agrotóxicos, e que ainda não foi assinado. “São medidas intersetoriais, que vão desde, por exemplo, ter mais laboratórios para a gente investigar as intoxicações, ações de formação de profissionais que sejam mais sensíveis, e profissionais que não sejam só das áreas agrárias (…) mas também outros profissionais da área da saúde, do direito, da área ambiental e biológica, que eles estejam preparados para identificar e sensibilizar sobre as questões dos agrotóxicos”, ressalta Fernanda, identificando como ações mínimas para proteger a saúde humana e o ambiente no Brasil. Para ela, o direito à informação é fundamental para sabermos o que estamos enfrentando e como é possível nos organizarmos diante deste contexto, para que possamos exigir políticas que se contraponham ao agronegócio e aos agrotóxicos, “e não há caminho que não seja a partir da agroecologia”, destaca.
Uma das frentes criadas neste sentido é a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO), instância de participação da sociedade civil no acompanhamento da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO) e na elaboração do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. A CNAPO foi retomada em 2024, porém, segundo Fernanda, tem encontrado dificuldades para avançar. Ela cita avanços no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), porém, não avançou como esperado devido ao cenário político que, apesar de ser composto por um governo do campo progressista, tem uma frente contrária muito forte.
Por fim, a pesquisadora menciona a importância da organização da população para cobrar medidas de combate ao uso de agrotóxicos, afirmando que existem alternativas. “A gente precisa pedir, incentivar, que sejam criadas feiras, modelos de comercialização de alimentos agroecológicos dentro do nosso município, do nosso bairro, da nossa região, promover feiras de sementes. Não dá para a gente aceitar que a nossa água está envenenada e não fazer nada a respeito”, conclui.
Por Julia Saggioratto, assessoria de comunicação da Rede de Estudos Rurais.
Links:
Conheça a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.
Resenha sobre o livro de Larissa Lombardi “Agrotóxicos e colonialismo químico”
Publicação da CPT sobre conflitos no campo brasileiro
Relatório “Territórios Vitimados Diretamente por Pulverização Aérea de Agrotóxicos no Maranhão”