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Digitalização à serviço da sustentabilidade e da justiça social no meio rural, é possível? 1

Digitalização à serviço da sustentabilidade e da justiça social no meio rural, é possível?

Digitalização à serviço da sustentabilidade e da justiça social no meio rural, é possível? 2
Bruno Maciel, do assentamento Roseli Nunes, testa o Radis Cerrado, aplicativo desenvolvido na Universidade de Brasília, que leva tecnologia de restauração ambiental para camponeses e quilombolas no Cerrado (Foto: Divulgação)

 

Em uma análise sobre a digitalização no campo, o professor Mario Ávila discute os desafios e as oportunidades para a agricultura familiar, destacando como a tecnologia pode ser uma aliada da sustentabilidade e da justiça social.

A marginalização e a estereotipização do campo e do pequeno agricultor como local e sujeito de atraso ainda ronda o imaginário social. O agro que é tech, que é enaltecido, inclusive, no sertanejo universitário, está relacionado com as grandes propriedades produtoras de commodities. Bernardo Mançano Fernandes e Mônica Castagna Molina em seu artigo “O campo da educação do campo”, mencionam que a ideia construída a partir do que é o mundo rural tradicional está relacionada com a produção em larga escala, o uso extensivo de agrotóxicos, assim como a rejeição dos saberes tradicionais dos camponeses, legitimando um modelo econômico e cultural que privilegia o projeto do agronegócio. “Desta lógica tornam tudo o que está de fora exótico, estranho, porque contradiz evidências. Não à toa “jeca tatu” é tão incorporado à sociedade como estereótipo do atrasado”. Neste sentido, assim como tantas concepções e criações da sociedade que são historicamente utilizadas para manutenção do sistema capitalista, a tecnologia no setor agrícola também acaba por se concentrar nas mãos de grandes produtores e monopólios de informação.

No entanto, existem discussões e proposições que surgem no sentido de pensar uma transição digital justa que favoreça, de igual forma, a transição para sistemas alimentares sustentáveis, como crie oportunidades de inclusão produtiva para agricultores e agricultoras familiares, povos e comunidades tradicionais. Em maio deste ano, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) anunciou a pactuação do primeiro Plano de Transformação Digital (PTD). De acordo com informações do site gov.br, o objetivo do plano é “fortalecer a agricultura familiar e promover o desenvolvimento sustentável em todo o país, por meio da digitalização dos serviços disponibilizados pelo MDA, (…) um instrumento de planejamento de ações voltadas para o avanço da oferta de serviços públicos em formato digital para os cidadãos.  “Tecnologia e Inovação na Agricultura Familiar: crise climática, agroecologia e combate à fome” também foi tema de um dos espaços autogestionados da Cúpula Social do G20, no dia 14/11, espaço que teve a participação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

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Participantes do seminário Tecnologia e inovação a agroecologia na reforma agrária, organizado pelo MST (Foto: Priscila Ramos MST)

Para conversar sobre esse assunto, convidamos o professor Mario Ávila, Doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília, que atualmente trabalha como professor e vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural (PPG-MADER/UnB). Para Mario, pensar a digitalização do meio rural significa pensar em processos que integrem tecnologias digitais de informação e de comunicação, que permitam transformar a produção, a gestão de recursos, a comercialização e as práticas gerais dos sistemas agroalimentares. “Ainda estamos falando de tecnologias básicas como o próprio celular, mas estamos falando também de sensores, de drones, de Internet das Coisas, de Inteligência Artificial, Big Data, Blockchain, e outras coisas mais”, destaca. Ele ressalta, no entanto, que a desigualdade de acesso às tecnologias tem sido um dos aspectos mais importantes a ser discutido na atualidade, já que pensar em como incorporar a digitalização na realidade camponesa pode ser um desafio em um contexto em que a própria ação governamental cria, muitas vezes, condições mais favoráveis aos grandes produtores, em contraposição à realidade de agricultores familiares que têm dificuldade no acesso simples a e-mails, por exemplo.

 

Perspectivas versus ameaças

A modernização da agricultura brasileira tem sido tema de discussões no Brasil desde que as sociedades iniciaram o processo de transformação em direção à urbanização e industrialização das cidades. Apesar disso, como já vimos, falar em modernização nem sempre significa algo positivo. Contribuindo nesta perspectiva para descrever de forma mais completa os diversos temas que envolvem este assunto, Mario, que também é Diretor Presidente da Rede Brasileira de Pesquisa e Gestão em Desenvolvimento Territorial (RETE), destaca que existem quatro aspectos importantes a serem mencionados quando se fala de possibilidades tecnológicas que podem auxiliar ou promover a sustentabilidade no campo brasileiro. Um primeiro ponto seria a eficiência de recursos, reduzindo o desperdício com uma gestão mais eficiente dos recursos hídricos, com monitoramento das condições climáticas, de chuva e do solo. O segundo se relaciona aos impactos climáticos, a partir de um monitoramento mais próximo das cadeias alimentares, o que permite reduzir pegadas de carbono e fazer com que a ideia de circuitos curtos agroalimentares funcionem. “Permite a gente discutir modelos mais adaptados às questões climáticas e permite, também, que tecnologias que são, às vezes, distantes dos pequenos agricultores cheguem mais rápido”, ressalta.

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A tecnologia permite rastrear e preservar variedades de alimentos locais e as integrar ao mercado, aproximando o produtor ao consumidor. (Foto: Daniela Moura/Mídia Ninja)

Outro aspecto citado pelo professor é a possibilidade de rastrear e preservar variedades de alimentos locais e as integrar ao mercado, aproximando o produtor ao consumidor. Por fim, a inclusão digital é ponto importante da discussão, já que permite maior independência aos agricultores em relação a insumos externos e de pacotes tecnológicos, oportunizando, também, maior acesso ao conhecimento e à informação. “Eu acho que capacitar, atrair jovens, fortalecer a Agricultura Familiar, todas essas práticas convergem para uma inclusão social econômica e consequentemente sustentável”, finaliza.

Em contrapartida, os aspectos negativos também fazem parte da discussão do tema. Como já mencionado acima, a desigualdade e a exclusão digital ainda são pontos chave que se relacionam com a exclusão de pequenos agricultores de modelos mais tecnológicos de comercialização de produtos e sua dependência de monopólios de grandes empresas tecnológicas. “Grande parte do meio rural que não está coberto por tecnologia 3G, 4G ou 5G das empresas presentes no mercado nacional hoje são supridas essencialmente pela Starlink do Elon Musk, a gente já sabe qual o tamanho do desafio que isso nos obriga”, questiona. Além disso, a privacidade e a soberania nacional da base de dados também têm grande importância neste debate, que para Mario devem ser gerenciados por governança nacional. Neste contexto, ele menciona a parceria do Brasil com a China a partir da entrega de máquinas agrícolas para a agricultura familiar. “Boa parte dessas máquinas vêm carregadas de dispositivos e sensores que coletam informações tanto do solo, quanto da chuva, quanto da produção e quiçá devem estar coletando informações também do subsolo, de quem opera, e onde vão parar esses dados?”, questiona. Além da coleta de dados, ele destaca que os modelos e tecnologias chinesas não são adaptados para a realidade brasileira, não colocam em perspectiva o olhar que se deve ter com o meio ambiente, os biomas e os recursos naturais.

 

A conjuntura de interesses no processo de transição digital

Os interesses internacionais sobre o Brasil registraram um aumento nas primeiras décadas do século XXI. Em texto de Daniel Buarque para o Nexo Jornal, ele menciona que nesse período o Brasil estava se consolidando em uma ascensão no contexto mundial, o que se alinhava “à sua aspiração histórica de alcançar o status de grande potência”, apesar do desconhecimento e dos estereótipos principalmente das elites internacionais em relação ao Brasil. Os interesses geopolíticos e econômicos das grandes potências internacionais como a China, Estados Unidos e países da União Europeia sobre a transição digital rural no Brasil se relacionam, principalmente, com a coleta e a governança de dados. “John Deere, Bayer, as grandes empresas querem ter, a partir de suas plataformas digitais, a coleta das informações dos produtores para fazer com que sejam seus fieis consumidores e, também, fieis fornecedores”, menciona o professor Mario Ávila. Ele também cita o interesse de cientistas, acadêmicos, de ONGs, em possuir informações sobre a digitalização de forma acessível, assim como a indústria de alimentos e o próprio governo, já que a transição digital pode contribuir no aumento da produtividade, no fortalecimento da segurança alimentar e na efetivação de metas de desenvolvimento sustentável.

De acordo com Mario, não é possível atender a todos os interesses envolvidos na digitalização da agricultura no Brasil, ele destaca que é necessário que a discussão seja feita a partir da perspectiva dos pequenos agricultores, dos mais pobres, dos que sofrem mais e que são penalizados. A transição deve passar por um processo formativo de letramento dos/as jovens, no sentido de apresentar a eles/as a possibilidade de, a partir da tecnologia, terem voz sobre seus ativos territoriais e suas condições de vida, contribuindo na reversão gradual do processo de expropriação feito pela indústria, pelos grandes produtores e, até mesmo, pelo próprio governo sobre pequenos/as agricultores/as.

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Para Mario Ávila, a transição digital deve serpensada a partir da perspectiva dos pequenos agricultores, dos mais pobres, dos que sofrem mais e que são penalizados. (Foto: Luiz Fernandes)

Para ele, deve-se colocar a tecnologia à disposição das pessoas que possuem menos acesso e que são afetadas por todas as modalidades de desigualdades, promovendo maior independência, conexões, maior acesso à informação, ampliando e democratizando o acesso à tecnologia, seguindo, segundo Mario, a lógica de Dom Pedro Casaldáliga. “Ele dizia assim: ‘se tiver que escolher eu fico sempre do lado dos mais fracos’. Então eu sempre vou estar do lado dos agricultores familiares, dos afetados pela mudança climática e tentar discutir essa transição da agricultura sempre pela perspectiva destes indivíduos”.

 

Proposições

No sentido de “delinear diretrizes para uma agenda científica e política que promova o desenvolvimento e a adoção de tecnologias digitais na agricultura”, a Rede PP-AL (Políticas públicas e Desenvolvimento Rural na América Latina) liderada pelo Centro de Cooperação Internacional em Pesquisa Agrícola para o Desenvolvimento (CIRAD) e seus parceiros, irá realizar entre os dias 4 e 6 de dezembro o Seminário Internacional “Transição Digital na Agricultura e Políticas Públicas na América Latina”, na Universidade de Brasília Instituto de Ciências Biológicas, Campus Universitário Darcy Ribeiro. Serão três dias com mesas redondas, conferências e discussões relacionadas ao tema, além de uma visita de campo para conhecer a experiência de um projeto de digitalização com jovens rurais no Assentamento Oziel Alves – Planaltina – DF.

Por Julia Saggioratto, assessoria de comunicação da Rede de Estudos Rurais.

Confira abaixo mais informações:

Programa do Seminário em Portugês

Instagram Rede PP-AL

Links mencionados na matéria:

Artigo de Bernardo Mançano Fernandes e Mônica Castagna Molina: “O campo da educação do campo”: https://www2.fct.unesp.br/nera/publicacoes/ArtigoMonicaBernardoEC5.pdf

Matéria Nexo Jornal: https://www.nexojornal.com.br/externo/2024/02/12/a-visao-estereotipada-que-as-potencias-mundiais-tem-do-brasil

Conheça o Radis Cerrado

 

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