Terceira mesa do IX Encontro debateu transformações nas relações de produção e consumo; tarde foi dedicada ao professor e pesquisador Fernando Bastos.
Dando ênfase às questões agroalimentares globais, a terceira mesa-redonda do IX Encontro conectou na tarde da última quarta-feira (06/10) os pesquisadores Renata Mota, da Universidade Livre de Berlin, na Alemanha, Silvio Porto, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Fátima Portilho, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Paulo Niederle, da Universidade Federal Rural do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Coordenados pela professora Cimone Rozendo, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o grupo apresentou reflexões sobre as transformações das relações de produção e consumo de alimentos, com abordagens que foram desde a observação da sobreposição de temas nas lutas nos movimentos alimentares em diferentes partes do globo, o consumo político, a defesa da dissolução de alianças e a digitalização da agricultura.
Movimentos feministas agrários e o consumo político
Dando início ao debate, a professora de sociologia Renata Motta, do Instituto de Estudos da América Latina da Universidade Livre de Berlim (ULB/Alemanha), apresentou um panorama das lutas dos movimentos de alimentação que ela considera como “agentes de transformação da ordem alimentar global”.
“Acho importante começar com a constatação de que tem uma diversidade muito ampla de movimentos e iniciativas que criam relações de produção e consumo alternativas e que disputam a questão agroalimentar, e essas experiências são diversificadas de acordo com o local do globo”, disse.
A pesquisadora citou como exemplos os movimentos por Justiça alimentar dos Estados Unidos, os movimentos de soberania alimentar do Sul global, o protagonismo de movimentos feministas agrários da América Latina e os movimentos pela defesa do consumo político, predominantes no Norte global.
Líder do Grupo de Pesquisa Alimentos por Justiça, Poder, Política e Desigualdade em uma Bioeconomia, a exposição de Motta tomou como base seu estudo recém-publicado sobre a interseccionalidade de lutas dos diferentes movimentos alimentares.
A partir de uma revisão de literatura, a pesquisadora identificou o que ela chamou de “desigualdades alimentares”, termo que abrange cinco eixos de sobreposição de lutas dos movimentos alimentares, tais como classe, gênero, raça, diferença colonial urbano e rural e indigeneidades, diferenças entre humanos, não humanos com ecologias e outras espécies.
A socióloga argumentou sobre cada um dos eixos de sobreposição das lutas dos movimentos, mas chamou atenção para as experiências dos movimentos feministas agrários da América Latina, em função do seu pioneirismo nas discussões que sobrepõem alimentação e gênero.
“É importante partir do pressuposto de que o sistema alimentar, a ordem é extremamente desigual em termos de gênero nas três escalas que a gente pode analisar”, ponderou.
Ela analisou as escalas microdinâmica, que abrange a esfera doméstica, a macrodinâmica, que engloba o Estado e indústrias, e os níveis de organizações sociais, a exemplo dos sindicatos. Em todas as esferas, de acordo com ela, há desigualdade de gênero.
“E eu acho, então, que é importante olhar para a América Latina, que a América Latina mostra um forte protagonismo feminista nas lutas que aliam os direitos das mulheres as transformações do sistema no modelo de desenvolvimento rural e no modelo de produção de alimentos”, ressaltou.
Os argumentos de Motta se conectaram às reflexões da pesquisadora Fátima Portilho, da UFRRJ, que destacou em sua apresentação o consumo político de alimentos, prática incorporada por movimentos sociais a partir dos anos de 1990.
“Seria uma forma de perceber e usar o consumo como forma de participação e de pressão política para produzir mudanças sociais. Então, o consumo político seria uma estratégia de pressão política tanto em relação aos mercados, quanto em relação ao Estado, nessa pressão feita a partir de práticas de compra e de consumo. Um tipo de ação política individual e não institucionalizada, a exemplo dos movimentos sociais econômicos”, explicou.
Portilho citou que os boicotes, buycotts, políticas de estilo de vida e ações comunicativas são algumas das formas de consumo político, e dentro desse campo de estudo, o tema da alimentação é o que mais se destaca. A pesquisadora mostrou exemplos de campanha de boicotes à marca de café e também ações da organização Greenpeace como estratégias para estímulo ao consumo político.
De acordo com ela, no entanto, por se tratar de uma resposta individual para um problema coletivo, teria pouca chance de produzir as mudanças desejadas. Além disso, a pressão do tempo diário colocaria o engajamento político em segundo plano. Como saída, Portilho falou que correntes teóricas têm estudado os movimentos sociais como engajadores coletivos.
“Então, ao invés de pensar consumidores individuais agindo no mercado, a tendência, me parece, em termos de reflexão teórica, seria pensar que os movimentos sociais agem coletivizando os consumidores”, concluiu.
Concentração de poder
O professor Silvio Porto, da UFRB, argumentou sobre a necessidade de rupturas de poder. Ele iniciou sua exposição falando da diversidade de produção de alimentos no Brasil, mas que essa produção está atrelada a uma relação de poder que tem como base a concentração fundiária e a indústria e mercado de alimentos.
O pesquisador, que também realizou trabalhos de consultoria em Angola e São Tomé e Príncipe para a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) observou que, apesar da diversidade de alimentos produzidos no Brasil, há um cenário de restrição alimentar gerado pela concentração fundiária e o poderio das indústrias e mercados alimentares, fatores que dificultam transformações. “Por onde começa a mudança? Produção ou consumo?”, perguntou.
Porto seguiu argumentando que, em função do poder estabelecido, as transformações dificilmente ocorrerão como iniciativa dos agentes de produção. Pelo lado do consumo, o pesquisador lembrou do contexto de crises sanitária e sociopolítica, ponderando que a falta de renda impede que as pessoas escolham alimentos pela qualidade nutricional, num cenário em que pouco mais de 19 milhões de brasileiros passam fome.
Segundo Porto, há uma tríade que se articula, reforçando o poder da indústria de alimentos. Essa tríade, ainda de acordo com ele, é fortalecida pela atuação de órgãos de regulação, que produzem referências que valorizam mais a indústria a outros modelos de produção alimentar.
“Para mim, tem uma questão que desde os anos 1960 caminham juntos: a indústria, a nutrição e a medicina, conformando uma orientação no sentido daquilo que é saudável e não é saudável, ou alargando possibilidades de usos de produtos químicos e de aditivos sobre a forma, sobretudo a partir da própria referência que se tem em relação a Vigilância Sanitária. O referencial sanitário faz com que tenha conformado um poderio em relação à indústria de alimentos em detrimento da produção artesanal, da produção da agricultura familiar camponesa, da produção agroecológica”, analisou.
O pesquisador encerrou sua exposição defendendo que essa tríade e a concentração fundiária sejam rompidas para que haja, de fato, uma transformação nas relações de produção e consumo de alimentos.
Encadeado ao discurso da concentração de poder, Paulo Niederle, docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mostrou um cenário de fusões e digitalização dos serviços de indústrias alimentares.
O pesquisador explicou que esse processo, que é capitaneado por grandes players alimentares, tem ocasionado o que ele chamou de “pântanos alimentares virtuais”, em função da distribuição de comidas ultraprocessadas que afeta mais profundamente um público.
“A ideia de populações, sobretudo de periferia, negras, que são inundadas com produtos, alimentos ultraprocessados e não têm acesso a alimentos saudáveis. Elas podem e provavelmente se tornarão ainda mais vulneráveis a esse novo contexto alimentar, ambiente alimentar virtual”, disse.
Por outro lado, Niederle mostrou iniciativas de cooperativas e movimentos agrários que têm digitalizado suas produções, caminhando no sentido da Justiça alimentar. “Como a gente distribui essa sinergia entre diferentes atores e movimentos para produzir redistribuição, reconhecimento social, Justiça alimentar, etc.?”, perguntou.
Niederle também falou que a questão fundiária no Brasil deve ser discutida. “Eu acho que o tema alimentar, de modo algum, pode dar a entender que ele supera uma questão agrária que nunca foi superada no Brasil. Pelo contrário eu acho que as experiências da via campesina, mesmo com a ressignificação do consumo alimentar, tem demonstrado que o alimentar é uma boa entrada para discutir o agrário”, opinou.
O pesquisador refletiu que o caminho para as transformações nas relações de produção e consumo passa por estados e estruturas supra estatais capazes de regular o capitalismo de plataforma e o próprio capital financeiro, “porque senão a capacidade de concorrência dessas experiências com as corporações se torna muito difícil”, concluiu.
Uma estrela
Naquela tarde, as reflexões acadêmicas foram dedicadas à memória de Fernando Barros, docente da UFRN. A coordenadora da mesa, Cimone Rozendo, também docente da UFRN, encaminhou uma mensagem em que prestava homenagens ao pesquisador.
“Em nome da Rede Rural, queria dedicar essa reflexão de agora à tarde ao meu companheiro Fernando Bastos, grande colega aqui da UFRN e que faleceu no último dia 10 (de setembro) e nos deixou, virou uma estrela”, dedicou.
Rozendo lembrou que Bastos foi um membro presente da Rede de Estudos Rurais, contribuindo ativamente nas atividades e organização de eventos promovidos pela Rede.
“Então, quero dedicar essa tarde, esse momento de reflexão, a memória do Fernando por todas as coisas boas que ele deixou para nós como pesquisador e como ser humano fantástico que o Fernando foi”, concluiu.
A terceira mesa do IX Encontro antecedeu o Painel de Análise de Conjuntura na programação do IX Encontro.