Desde 2006, a Rede de Estudos Rurais promove um espaço plural de troca entre academia, comunidades e movimentos sociais, fortalecendo o debate sobre o campo no Brasil
“Uma pessoa sozinha não é uma pessoa inteira, existimos em relação com os outros”. Depois de conversar com Ramonildes Gomes, professora da Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba, e também professora do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da UFCG, essa frase que aparece no livro Testamentos de Margaret Atwood, ficou ecoando em minha cabeça. Acredito que o existir em relação consegue descrever um pouco de como a Rede de Estudos Rurais tem procurado se construir desde sua fundação em 2006. Em um dos momentos da entrevista, Ramonildes, que se identificou em um primeiro momento como filha da Rede e, posteriormente, desempenhando papel de mãe, tendo sido duas vezes presidenta, retratou a Rede como um espaço diverso, interdisciplinar, de distintas gerações e espalhado por todo o território. “É o lugar da discussão dos estudos rurais a partir de diferentes olhares disciplinares e de saberes acadêmicos e não acadêmicos. A Rede é a síntese, é o somatório dessa riqueza”.

Jorge Ponciano Ribeiro (2021) expressa: “Somos o resultado, em andamento, das estradas que percorremos, das opções que fazemos, dos horizontes que nos pro-vocaram, das escolhas, dos com-tatos que nos fascinaram”. De fato, a sociedade em que vivemos nos individualiza e fragmenta, ao passo em que vamos perdendo a identidade coletiva, tão ameaçadora para as forças hegemônicas. Picheth e Chagas (2018), evocando Viegas (2014) falam sobre a identidade como movimento, uma dinâmica coletiva. “(…) a identidade possibilita a subsistência, sobreposição ou até libertação dos indivíduos em face da dominação, por meio do pertencimento de uma coletividade que preserve sua existência e contribua para que os papeis sociais sejam sobrepujados”.
Em sua apresentação, Ramonildes fez questão de demarcar o local de onde fala, a Paraíba, no semiárido brasileiro, espaço de muitas desigualdades, espacialmente em relação à questão agrária e fundiária. Neste contexto, podemos voltar alguns anos no tempo para compreender como surgiu a Rede de Estudos Rurais. Quem nos acompanha nesse relato é Leonilde Servolo de Medeiros, Professora titular no Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), Coordenadora do Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Política Públicas no Campo, do CPDA/UFRRJ e membro do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (Oppa) da mesma instituição. Os temas rurais, antes estranhos para Leonilde, viraram seu principal objeto de pesquisa desde quando ingressou na graduação em Ciências Sociais na USP em 1968, após uma oficina com Maria Isaura Pereira de Queiroz.

Leonilde conta que em 1979, no final da Ditadura Militar no Brasil, ela coordenou, já como professora do CPDA, o Projeto de Intercâmbio de Pesquisa Social em Agricultura, financiado pela Fundação Ford, o qual tinha como objetivo colocar os pesquisadores em contato, já que naquele momento se encontravam bastante isolados: “Nós não tínhamos noção do que se produzia no Brasil, ou tínhamos uma noção muito limitada”. Com o fim do projeto, ainda haviam muitas pessoas que reconheciam a importância do grupo, dos encontros, da troca de ideias, de questionamentos empíricos e teóricos que os encontros provocavam. No final da década de 1990, após outras tentativas de construir um grupo, foi criada uma Rede de Estudos Rurais que foi se estruturando durante encontros da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) com pesquisadores dos temas rurais.
No início dos anos 2000, quando Ramonildes trabalhava em seu projeto de doutorado, existiam poucos espaços de discussão sobre os estudos rurais e uma crescente valorização do agronegócio e da produção de commodities no país. Por isso, a doutoranda, junto com outras professoras, como sua orientadora Maria de Nazareth Baudel Wanderley, assim como Sônia Bergamasco, Vera Botta, Ângela Damasceno, a já citada Leonilde de Medeiros e outras, incomodadas com a restrição nos espaços, sobretudo acadêmicos e científicos, que os estudos rurais passavam particularmente no Brasil, aproveitaram os momentos em que se encontravam para debater como criar um espaço de discussão para pesquisadores comprometidos com os estudos rurais para além dos espaços acadêmicos. “Uma das formas de a gente enriquecer o conhecimento são, justamente, as trocas, a gente precisava viabilizar esses espaços de troca”, ressalta Ramonildes.
O primeiro encontro da Rede aconteceu em 2006, na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, RJ, com o apoio de Ana Maria Mota Ribeiro, professora do curso de Ciência Sociais, e de Márcia Motta, que era professora do Departamento de História da UFF. A partir deste momento, em que Leonilde e Ramonildes já estavam presentes, a Rede foi ganhando força, sempre orientada pela multi e interdisciplinaridade. “Dessa vez o esforço foi no sentido de institucionalizar, buscar recursos, também pela contribuição dos sócios, e manter o espírito desde o Pipsa, de colocar os trabalhos que estão sendo elaborados em discussão”, comenta Leonilde.
O enredar dessa trama

Em sua trajetória, a Rede de Estudos Rurais realizou 10 encontros em diferentes lugares do país abrangendo uma diversidade de pesquisadores e pesquisadoras de inúmeras universidades. Atualmente, mais de 200 pessoas são sócias ativas da Rede, realizando a troca de saberes idealizada há 19 anos. Os estudos e espaços rurais, assim como a qualidade de vida da população do campo, estão entre os princípios norteadores da Rede, assim como o fluxo de trocas a partir das experiências das pessoas. “A gente procura fazer um diálogo entre o que é demandado pelas pessoas, pelos grupos, pelas comunidades que habitam e experimentam o modo de vida nesses espaços rurais, e a relação desses grupos com o Estado e com academia”, destaca a professora Ramonildes.
Ela ainda menciona que a Rede procura ser um espaço de síntese mantendo uma relação de respeito e de interdependência com os grupos que vivem a experiência e com os movimentos sociais que também estão inseridos nesses grupos. “A produção de conhecimento, por um lado, [se faz] na academia, mas a academia não faz isso só”, salienta.
Este ano a Rede realiza o seu 11º Encontro, que será na Universidade Federal da Bahia em Vitória da Conquista, com o tema: “(In)justiça social e ruralidades em tempos de emergências climáticas”. Serão 14 Grupos de Trabalho com diversos temas relacionados aos estudos rurais, além de mesas e uma saída de campo. Leonilde Medeiros menciona que os encontros da Rede procuram reunir pesquisadores de todo o Brasil em nível de mestrado, doutorado e, também, estudantes de graduação. Além disso, ela menciona que a Rede buscou criar uma nova forma de realizar as discussões nos GTs a partir de uma ideia de Maria de Nazareth Baudel Wanderley que experienciou essa metodologia na França. Diferentemente da grande maioria de outros congressos nacionais e internacionais, os participantes do grupo não expõem individualmente seu trabalho.
Os interessados enviam seus trabalhos e os coordenadores dos GTs realizam um processo de seleção. Por seguinte leem os trabalhos e produzem uma síntese enfatizando as questões teóricas e metodológicas das produções no sentido de criar pontes para a discussão, provocando todos que participam a debater embasados na síntese de todos os trabalhos. “No caso da Rede, as pessoas individualmente não expõem seus trabalhos, (…) as pessoas estranham nesse ponto. Alguns participantes se queixam porque não gostam, porque não conseguem expor seus trabalhos, mas eu acho que muitos participantes acabam se interessando por esse modelo pela possibilidade que aparece na dinâmica do grupo de se aprofundar questões teóricas e metodológicas, o que nem sempre é possível [em outros encontros] porque acaba sendo difícil produzir uma síntese posterior”, destaca Leonilde. No mesmo sentido, Ramonildes complementa ressaltando a importância desta metodologia que ela identifica como patrimônio da Rede: “são três dias de discussão em que o seu trabalho vai ser tocado diversas vezes (…), as pessoas não vão para o encontro da Rede para apresentar trabalho, elas vão para socializar sua experiência de pesquisa com outros pesquisadores que também discutem aquele tema, você volta com sua bagagem cheia”.
O entrelaçar da Rede
Pesquisar em rede partilhando do conhecimento e das experiências, reunir jovens pesquisadores se debruçando sobre os espaços e as áreas rurais, especialmente áreas ocupadas pela agricultura familiar camponesa, são processos que compõem as expectativas para o 11º Encontro da Rede de Estudos Rurais para Ramonildes Gomes. Para ela, o Encontro se propõe a colocar o dedo na ferida da injustiça e da desigualdade social de forma qualificada e embasada na pesquisa. Nesta perspectiva, Leonilde Medeiros considera que a Rede tem conseguido trazer à tona um conjunto de questões relevantes para o debate sobre o meio rural brasileiro, trabalhando, também, na sua relação com o urbano, inclusive questionando “os muros rígidos que separam essas duas realidades”. Ela finaliza destacando que a continuidade da Rede é uma prova de que os temas e a forma como as discussões têm sido realizadas, são interessantes e importantes, produzindo impactos.

Tecer redes em uma sociedade que nos ensina a construir cercas é, sem dúvida, um desafio imenso. E como só existimos em relação, com muita alegria o 11º Encontro da Rede vem sendo construído. Ramonildes, citando a frase: “O maior diferencial em qualquer lugar é a figura humana, todos os processos somos nós que assumimos e fazemos sob determinadas condições”, nos indica o caminho para a construção de um novo rural brasileiro, para uma nova sociedade.
Por Julia Saggioratto, assessoria de comunicação da Rede de Estudos Rurais.