Menu fechado
O direito fundamental à terra e o esbulho do capital 1

O direito fundamental à terra e o esbulho do capital

A atualidade da discussão sobre a Reforma Agrária e a Transição Agroecológica na mudança da estrutura agrária e social no Brasil

Historicamente a ocupação territorial do Brasil foi marcada pela invasão e pelo latifúndio. A invasão das Américas e, mais especificamente, do Brasil, instaurou um processo de violência e expurgo dos territórios originários ocupados de forma ancestral pelos inúmeros povos indígenas da América Latina. Desde o processo de invasão, a terra, que passou a ser entendida a partir de então como mercadoria, permaneceu em sua grande parte nas mãos de poucos, sem cumprir com sua função social prevista, inclusive, na Constituição Brasileira de 1988, que inclui: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Em segunda instância podemos questionar de que forma nos relacionamos com a terra, como se dá esta relação quando a vemos apenas como propriedade ou, em contrapartida, quando temos uma relação de vida e de respeito com os territórios, quando existe troca e não exploração, e quais as consequências destas diferentes ações sobre o território brasileiro. Os povos indígenas nos ensinam, resistindo ao processo constante de extermínio, como devemos olhar e perceber a Mãe Terra, na contramão do modo de produção capitalista baseado na produção de commodities em larga escala, o que intensifica o êxodo rural e a degradação do solo e da natureza. É o que menciona Lauro Mattei, em seu artigo “O debate sobre a reforma agrária no contexto do Brasil rural atual”. Neste contexto, a discussão sobre a Reforma Agrária brasileira, que se caracteriza por um conjunto de processos e políticas públicas que possam modificar a estrutura agrária brasileira, ganhou força após a reabertura democrática e com o surgimento de Movimentos Sociais de luta pela terra, como o próprio Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, surgido na década de 80. Segundo Mattei, no artigo publicado em 2016, a discussão sobre a Reforma Agrária vinha ganhando notoriedade nas três décadas anteriores, tendo maior destaque nas agendas governamentais e nos debates acadêmicos sobre o modelo de desenvolvimento brasileiro. No entanto, em 2016, a partir do processo de golpe sofrido pela presidenta Dilma, o avanço da extrema direita no Brasil colocou em xeque as discussões no âmbito progressista no país, as quais retomam neste momento de nova conjuntura política institucional.

O direito fundamental à terra e o esbulho do capital 2
Ao centro da foto, Reginaldo Barbosa (Foto: Arquivo Pessoal de Reginaldo Barbosa).

Em entrevista para a Rede de Estudos Rurais, Reginaldo Barbosa, que é Bacharel em Direito e Doutor em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente, também é morador assentado do Horto Bueno de Andrada, em Araraquara/SP desde 1998 e trabalha desde 2008 com pesquisas sobre a Questão Agrária com foco na Sociologia Rural, Sistema de Produção Agroecológico, parcerias agrícolas, levantamento e produção de Dados Ambientais, mapeamento e análise. Para Reginaldo, a discussão da Reforma Agrária precisa ser feita com a sociedade civil como um todo. Ele menciona que vivemos em um momento muito delicado a partir de alterações no sistema climático e ambiental com queimadas no Pantanal, seca na Amazônia, enchentes no Rio Grande do Sul e altas temperaturas que impactam significativamente a produção agrícola de pequena e larga escala. “Entender o papel dos assentamentos hoje é entender que num projeto de Reforma Agrária tem que se atentar a alguns princípios básicos, como a preservação ambiental, a proteção dos recursos hídricos, a produção de energia renovável, a necessidade da produção de alimentos saudáveis”, destaca o pesquisador.

Segundo ele, que também atua como educador de jovens e adultos em organizações populares, a ausência da sociedade civil no projeto de Reforma Agrária nacional acarretou em um distanciamento entre os projetos de assentamento e a cidade. Na região de Araraquara, onde mora Reginaldo, existem dois grandes assentamentos que têm cerca 900 lotes, com 16 hectares de terra cada lote, e em 80% dessa área de terra está sendo produzida cana de açúcar. “Qual é a discussão hoje a respeito da Reforma Agrária? No que a atual proposta beneficia a sociedade nos aspectos ambientais, econômicos e culturais?”, questiona Barbosa.

O direito fundamental à terra e o esbulho do capital 3
Atividade no Assentamento Horto Bueno de Andrada, em Araraquara/SP (Foto: Arquivo Pessoal de Reginaldo Barbosa).

Para Reginaldo há uma disparidade nos recursos destinados para agricultura familiar e para o agronegócio do ponto de vista de política de Estado. Segundo ele, mesmo com a implantação de programas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), por exemplo, existe uma dificuldade do pequeno agricultor utilizar esta política pública e se estabelecer economicamente para poder manter a produção, funcionando mais adequadamente quando o produtor já possui estrutura econômica, quando não possui, essas propostas se tornam inviáveis na disputa com o agronegócio. Ele destaca que são raras as regiões onde o pequeno produtor subsiste em relação ao assédio do agronegócio, sobrevivendo, em muitas situações, a partir do apoio de organizações populares, ONGs ou associações.

Neste sentido, ele comenta que a agroecologia, que é uma agricultura que se adéqua às necessidades ambientais das quais estamos vivendo, não é, no entanto, uma produção barata, já que por mais que não se utilize insumos agrícolas, requer mais de mão de obra pelo trabalho mais direto com a natureza, o que requer mais tempo e, por consequência, capital de giro. “Se nós não entendermos que o pequeno produtor exerce uma função para a sociedade e ele não pode deixar de produzir, nós não daremos o mesmo valor que se dá ao agronegócio, (…) enquanto estivermos inserindo esse produtor na lógica do mercado do capital a gente não vai dar segurança para que ele possa continuar produzindo porque ele não tem estrutura para a competitividade. Quem será prejudicado é a sociedade que respira um ar poluído, não se beneficia com a produção de alimentos, com a preservação ambiental e dos recursos hídricos”, finaliza Reginaldo.

Perspectivas e novos desafios

A discussão que já ultrapassa décadas permanece no centro das pautas ligadas ao direito à terra no Brasil, um direito humano fundamental, já que o modelo econômico, social e de produção agrícola atual já demonstrou não ser capaz de distribuir comida e moradia digna para a população e, menos ainda, de proteger nossa casa terra. Para o professor Sérgio Sauer, da Universidade de Brasília (UnB), o qual atua desde 2008 como pesquisador sobre temas como o campo/mundo rural, especialmente sobre políticas fundiárias, luta pela terra e movimentos sociais, além de coordenar o Observatório de Conflitos Socioambientais do Matopiba, comenta que para muitas pessoas a democratização no acesso e desconcentração da terra seriam desnecessárias pois, segundo ele, estas decretaram o “fim do campo”. Porém, para Sauer, que também é associado da Rede de Estudos Rurais, o acesso e o direito à terra, como são os assentamentos, são conquistas sociais, políticas e econômicas que vêm, no entanto, enfrentando velhos e novos desafios. “Estudos, reflexões, ressignificações desses territórios desvelam lacunas, apontam desafios e abrem perspectivas, fundamentais para ampliar práticas sustentáveis, orgânicas e promover a transição agroecológica”, destaca o professor.

O direito fundamental à terra e o esbulho do capital 4
XI Simpósio sobre Reforma Agrária e Questões Rurais na UNIARA, em Araraquara/SP. Na foto, professora Vera Botta recebe o carainho dos outros participantes da mesa (Foto: Flavio Pontes).

No sentido de fomentar as discussões acerca do tema da Reforma Agrária, há quase 20 anos o Núcleo de Pesquisa e Documentações Rurais, (Nupedor), da Universidade de Araraquara (UNIARA), organiza, a cada dois anos, o Simpósio sobre Reforma Agrária e Questões Rurais. Neste ano, o grupo, que é coordenado pela professora Vera Botta, da UNIARA, pioneira na pesquisa sobre o movimento de luta dos boias-frias pela terra e que trabalha com temas como ruralidades e políticas públicas, realizou, entre os dias 19 e 21 de junho na mesma universidade, em Araraquara/SP, a XI edição que teve como tema “Transição Agroecológica e Tensões Socioambientais: Os Desafios do Tempo Presente”, com 469 inscrições distribuídas entre assentados, pesquisadores, estudantes de graduação e pós-graduação e professores tanto da rede privada quanto da rede pública de diversos estados, além de participantes estrangeiros.

De acordo com a professora Vera Botta, a abertura contou com um anfiteatro lotado com a cantoria das crianças da Escola Municipal Hermínio Pagotto do Assentamento Bela Vista do Chibarro, com homenagem à Professora Dulce Whitaker. “Registramos a presença massiva de acampados e assentados, incluindo trabalhadores do Movimento Terra e Esperança, dos assentamentos de Caiuá, Marabá Paulista, Barra Bonita, Descalvado, São Carlos, Barretos, Araraquara, Taquaritinga e Ribeirão Preto, com comissões e representantes de várias regiões do estado de São Paulo”.

O direito fundamental à terra e o esbulho do capital 5
Participantes do Simpósio (Foto: Flavio Pontes).

Vera também destacou a participação de representantes do Incra, do MDA, o que possibilitou reuniões importantes com assentados e acampados para discutir como a autarquia irá se posicionar efetivamente diante dos assentamentos e das possibilidades de titulação de terras. Além disso, a atividade também realizou uma feira agroecológica com a presença de representantes do assentamento Sepé Tiaraju. A professora ainda menciona que a participação expressiva desses grupos foi de suma importância para a discussão da temática do simpósio, já que são eles quem vivenciam diretamente os desafios e as tensões socioambientais na transição agroecológica. “Suas experiências e perspectivas enriqueceram o debate e contribuíram para a formulação de soluções práticas e contextualizadas. Existe uma transição agroecológica? Como estão sendo essas experiências?”, ressalta.

O direito fundamental à terra e o esbulho do capital 6
Participantes do Simpósio (Foto: Flavio Pontes).

Além das palestras e mesas com participantes nacionais e internacionais, o Simpósio contou com a apresentação de 180 trabalhos, divididos em 22 salas, com participações tanto presenciais quanto online. “Essas apresentações permitiram um aprofundamento teórico e prático sobre a temática, promovendo uma troca de conhecimentos essencial para enfrentar os desafios do tempo presente na reforma agrária e nas questões rurais. Nós vemos as políticas públicas indo na contramão, muitas vezes, de uma possível Reforma Agrária, então por que insistir na importância da Reforma Agrária e na Transição Agroecológica?”, questiona a pesquisadora.

Dentro deste contexto, o assentado Reginaldo Barbosa menciona a importância da participação dos trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade em atividades como esta, a qual ele também teve papel essencial como mediador, destacando que em muitas atividades das quais participou para discutir sobre a Reforma Agrária, havia pouca participação dos maiores interessados no tema: “o objeto de pesquisa dos acadêmicos fica a desejar quando desenvolve uma pesquisa numa região envolvendo questões ambientais, econômicas e culturais, entendendo o contexto social daquele grupo, [mas que] raramente o grupo em questão tem acesso a essas informações, não tem o conhecimento da visão da academia ao mundo em que ele vive”, comenta, mencionando, também, que o Simpósio procurou inovar com trabalhadores rurais e urbanos somando cerca de 80% do público participante da atividade. “Esses eventos tornam-se extremamente relevantes por trazerem a discussão política quando o trabalhador também está inserido nesta discussão, os envolvidos na pesquisa, na investigação, para que possam tomar parte de todo o procedimento da construção histórica”, finaliza.

O direito fundamental à terra e o esbulho do capital 7
Moradores do Assentamento Horto Bueno de Andrada (Foto: Arquivo Pessoal de Reginaldo Barbosa).

O professor Sérgio Sauer, que também participou do Simpósio como palestrante da mesa com o tema “Conflitos Socioambientais e Vulnerabilidades Agravadas: Rupturas e Continuidades”, salienta que, assim como é a comunidade da Rede de Estudos Rurais, “existem muitas sinergias acadêmicas e cooperação política: apoio às lutas por terra e políticas de desenvolvimento para o campo; análises críticas de políticas públicas; acompanhamento e assessoria aos movimentos sociais agrários, entre outros trabalhos que dão sentido às redes e iniciativas”. Ele destaca que os simpósios têm algumas particularidades que transcendem os muros das universidades, criando espaços de diálogo, reunindo lideranças agrárias, pesquisadoras e estudantes e operadores de políticas públicas. “Os estudos críticos e reflexões ajudam, portanto, a entender as políticas em execução, mas também os problemas e lacunas, apontando necessidades e mudanças”, conclui.

Mudança de paradigma

Em linhas gerais, o XI Simpósio sobre Reforma Agrária e Questões Rurais procurou discutir o mundo rural, a partir dos dilemas e das ressignificações dos assentamentos rurais, colocando em discussão a reavaliação e mudança das políticas públicas dirigidas aos agricultores, principalmente aquelas que se propõem à transição agroecológica. Reginaldo salienta que essa mudança de paradigma no que diz respeito ao modelo de produção agrícola é extremamente necessária e emergente. “Ou alteramos o nosso modo de viver e de observar e conviver com a natureza, ou a gente coloca em risco a sobrevivência de toda uma humanidade”. Para ele, a questão agrária é uma discussão a nível mundial, mas que temos que nos preocupar também com nossa casa, com nosso espaço, com nosso quintal: “a preocupação com a questão ambiental, com o Brasil, e a Reforma Agrária se torna extremamente necessária para que a gente possa barrar o avanço da degradação ambiental que estamos presenciando, aí entra a produção agroecológica que é uma questão de mudança de modo de vida, de entendimento em relação a natureza e ao consumo, uma nova estrutura de vida”, afirma.

O direito fundamental à terra e o esbulho do capital 8
Atividade no Assentamento Horto Bueno de Andrada, em Araraquara/SP (Foto: Arquivo Pessoal de Reginaldo Barbosa).

No mesmo sentido, Sauer defende que ampliar as políticas fundiárias é primordial, com a criação de assentamentos e acesso à terra para as famílias que não têm terra. “É fundamental ainda reconhecer direitos à terra, ou direitos territoriais, dos povos e comunidades tradicionais. Esse reconhecimento deve ser materializado em políticas que atendam às demandas e resolvam problemas do campo, inclusive a realidade de fome e insegurança alimentar da população que produz alimentos”, salienta. Ele ainda acrescenta que as políticas públicas que venham para solucionar essa contradição são fundamentais para mudanças nos sistemas alimentares, processo que deve ser aliado a práticas produtivas, a partir de alimentos saudáveis, sem agrotóxicos, por exemplo, nutritivos e acessíveis à população em situação de vulnerabilidade ou insegurança alimentar.

Por Julia Saggioratto, Assessoria de Comunicação Rede de Estudos Rurais.

—-
Para acessar mais informações sobre o Simpósio, como os temas das mesas de debate e as sessões temáticas acesse: https://www.uniara.com.br/eventos/xi-simposio-reforma-agraria-questoes-rurais/.

Artigo de Lauro Mattei: https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/2175-7984.2016v15nesp1p234

Outras Notícias