
A partir da relação simbólica e produtiva com a terra, o texto discute os desafios estruturais e as potencialidades das políticas voltadas à agricultura familiar e ao desenvolvimento rural no Brasil.
Mãe Terra, que em quíchua, língua materna de milhões de pessoas nos Andes, é Pachamama, uma divindade que para povos andinos e comunidades como o Bem Viver, Sumak Kawsay, Sumak Qamana, Teko Porã, representa a terra, a fertilidade, a maternidade, a proteção e o ciclo da vida, conforme descreve texto da Consciência Pachamama, publicado no Brasil de Fato, que fala sobre uma mudança de olhar no que se refere a nossa relação com a terra. Para a cosmovisão dos povos do campo, das águas e das florestas, existe um “vínculo de amor e devoção à terra”, comunidades que seguem uma perspectiva de que “o planeta, não é um recurso que pode ser explorado de maneira indiscriminada, predatória”.
Durante o mês de abril celebramos o Dia Internacional da Mãe Terra, criado no início dos anos 1970 nos Estados Unidos em um fórum ambiental contra a poluição, após um enorme vazamento de petróleo em uma plataforma na região da costa da Califórnia em 1969 que durou 11 dias e despejou cerca de 15,9 milhões de litros de petróleo no Oceano Pacífico. Em 2009 a ONU adotou o dia 22 de abril como uma data dedicada a promover a consciência ambiental e o desenvolvimento sustentável em todo o mundo.
Este ano o Dia Internacional da Mãe Terra ocorre durante a Década da ONU para a Restauração de Ecossistemas, “um apelo para a proteção e revitalização dos ecossistemas em todo o mundo, para o benefício das pessoas e da natureza”, que vai de 2021 a 2030, ano que marca o prazo final para a realização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, assim como momento identificado por cientistas como a última chance de evitar mudanças climáticas catastróficas.
Pensar na terra de forma afetiva, como mãe, parece algo distante em uma sociedade capitalista ocidental que reduz a natureza a sua subordinada, interagindo com a terra de forma a obter lucro. Esse processo se dá em uma trajetória de expropriação de camponeses e povos originários de seus territórios seguida da mercantilização da terra, reduzindo “a relação humana com a natureza puramente a termos de posse individual” (FOSTER, 2002 apud AGUIAR; BASTOS, 2012).

O direito à terra está diretamente ligado ao acesso a outros direitos sociais como o direito à moradia, à educação, à saúde e à alimentação, por exemplo. No que se refere ao direito à alimentação e à moradia, a Reforma Agrária, a criação de assentamentos rurais e o reconhecimento e demarcação de comunidades tradicionais, como indígenas e quilombolas, são processos indispensáveis para pessoas historicamente excluídas e privadas de direitos. Sobre isso conversamos com o professor Henrique Carmona Duval, do Centro de Ciências da Natureza da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e membro da diretoria da Rede de Estudos Rurais.
Henrique menciona que quando as pessoas conquistam o direito à terra, passam a ter moradia digna para criar seus filhos, podendo matriculá-los em escola, tendo acesso à rede de saúde, além da possibilidade de reconstrução e reafirmação de suas identidades culturais. Do mesmo modo, quando uma família possui acesso à terra regularizada, podem iniciar uma atividade produtiva na agricultura garantindo alimentação para as próprias famílias assim como podendo estar integrada às necessidades de abastecimento dos centros urbanos e dos mercados. De acordo com o professor, produzir o seu próprio alimento é fundamental para a agricultura familiar, considerando todas as dificuldades materiais vividas por essas pessoas. “São práticas que mudam a relação das pessoas com a terra, que passa a ser vista como fonte primária de obtenção de nutrientes e que possibilitam práticas agroecológicas”, destaca. Além da dimensão simbólica e cultural que há na produção do próprio alimento.
A relação da agricultura familiar com a terra é uma relação afetiva, o oposto da relação da agricultura convencional, a partir da produção de commodities com uma visão meramente produtivista sobre a terra. “Quando você traz para dentro de casa os carboidratos, as vitaminas, os sais minerais e até as proteínas animais que vêm das pequenas criações que você toma conta, e transforma tudo isso na alimentação da sua família, essa relação com a terra pode ser considerada uma relação de afetividade”, ressalta o professor. Ele comenta também sobre os Quintais Produtivos, com o protagonismo das mulheres no cuidado desses espaços.

O Bem Viver é um bem comum
Quando falamos do direito à terra, estamos falando, também, da capacidade que as comunidades tradicionais e camponesas possuem de preservar os territórios e garantir segurança alimentar para os municípios brasileiros, cumprindo com uma função social e ambiental dos territórios. “Isso, claro, depende de muitos outros fatores, como o acesso aos recursos, às tecnologias sociais, às políticas públicas, ao serviço de Ater, acesso a mercados”, menciona Henrique.
Neste sentido, o professor menciona políticas como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), enquanto mercados constituídos para a agricultura familiar, assim como a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária (PNATER) e a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), programas que ele considera que tiveram avanços em relação ao papel do Estado enquanto dinamizador do desenvolvimento rural, mas que possuem limitações em relação a sua atuação ao longo dos anos.
Outra política pública importante mencionada pelo professor Henrique é o Pronera, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, “voltado a jovens e adultos moradores de assentamentos criados ou reconhecidos pelo Incra, quilombolas, professores e educadores que exerçam atividades educacionais voltadas às famílias beneficiárias, além de pessoas atendidas pelo Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF)”, conforme descrição na página do Incra no site gov.br. A atuação do Pronera acontece por intermédio de parcerias com instituições de ensino públicas e privadas sem fins lucrativos, governos estaduais e municipais. A partir do Pronera, a UFSCar irá ofertar um curso de bacharelado em Administração no campus Lagoa do Sino e licenciatura em Pedagogia da Terra, das Águas e das Florestas, no campus São Carlos, com um total de 60 vagas em cada curso. Segundo o professor Henrique, o curso de administração terá, como principal objetivo, formar pessoas para gestão de cooperativas, associações e outros grupos formais ou informais nas comunidades, o que se caracteriza como um grande desafio no desenvolvimento dos assentamentos. “A gente identificou que [a formação de lideranças para a gestão dessas cooperativas] era uma das lacunas, principalmente que pudesse ter uma visão ampla sobre todo o sistema agroindustrial ou agroalimentar, no qual a agricultura familiar está inserida, pensando desde a produção primária, o processamento e os mercados, por meio da autogestão de uma forma orgânica pelas cooperativas, seja dos assentamentos e acampamentos, seja dos [beneficiários do] PNCF e as comunidades quilombolas”, finaliza.
Ainda neste contexto, neste mês de abril se formou a primeira turma de bacharelado em Agroecologia pelo Pronera do país, na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), com estudantes vindos de assentamentos, comunidades rurais e quilombos de Alagoas, Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. As reflexões e ações realizadas por movimentos sociais de luta pela terra e movimentos ambientalistas têm conseguido transformar realidades, com a transição ecológica em assentamentos, por exemplo, assim como avanços no campo acadêmico e científico. Essas movimentações contribuem na construção de uma transição ecológica em maior escala quando associadas a políticas públicas.

(Foto: Mykesio Max)
Caminhos
Um dos objetivos dos estudos rurais é, também, provocar a pensar caminhos para a justiça social no campo. A Agroecologia deve ter seu espaço estabelecido nestes caminhos, visto sua necessidade e urgência. Da mesma maneira, medidas de adaptação a eventos extremos já começaram a se tornar realidade diante do aumento do número de desastres socionaturais, que resultam da ação humana na natureza. Para Henrique, é essencial que se criem sistemas agropecuários mais resistentes e resilientes, que possam conciliar a conservação ambiental com a produtividade. “A gente precisa urgentemente de dados que embasem esse processo de transição e que a produção científica e tecnológica chegue lá na ponta, onde os processos estão acontecendo ou precisam acontecer”, destaca Carmona, ressaltando a importância de investimentos na ciência e na inovação tecnológica para acelerar o processo de transição.

Por fim, o professor Henrique salienta que a transição ecológica não se refere somente à agricultura, mas também a outros setores da economia como energia, insumos e transportes. “O Brasil é uma grande potência agrícola, como todos sabem, mas está na hora de a gente ser, também, uma potência em agricultura sustentável”, mencionando, no entanto, que não se refere a promover a produção de cana ou soja orgânicas, e sim de possibilitar novos sistemas de produção sustentáveis e agrobiodiversos em escala territorial, que conservem os ecossistemas, promovam o bem-viver e a produtividade de alimentos saudáveis.
Por Julia Saggioratto, assessoria de comunicação da Rede de Estudos Rurais.
Links e referências:
https://www.decadeonrestoration.org/pt-br/sobre-decada-da-onu
https://mst.org.br/2025/04/11/atraves-do-pronera-primeira-turma-de-agroecologia-se-forma-na-ufal/
AGUIAR, João Valente; BASTOS, Nádia. Uma reflexão teórica sobre as relações entre natureza e capitalismo. Rev. Katálysis, Porto, v. 1, n. 15, p. 1-24, jun. 2012.