Conversamos com Rodrigo Constante Martins, Integrante do Conselho Consultivo da Rede de Estudos Rurais e professor do Departamento de Sociologia da UFSCar, sobre os prejuízos que a crise hídrica vem causando no Brasil e as responsabilidades diante deste contexto
Falar em crise hídrica no Brasil, infelizmente, não é novidade e tem sido assunto frequente nos últimos anos. Em agosto deste ano, cerca de 20 municípios e mais de 250 mil pessoas sentiam os efeitos da seca severa no Amazonas, de acordo com a Defesa Civil Estadual, o que fez como que Agência Nacional de Águas (ANA) declarasse escassez hídrica em diversas bacias da região Amazônica devido a chuvas abaixo da média. Entre julho e agosto a seca se intensificou na grande maioria das regiões do Brasil, de acordo com o Monitor de Secas do Brasil, programa coordenado pela ANA. Além disso, dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) revelam que em 2022, em torno de 30,7 milhões de habitantes não tinham acesso à água encanada, com a maior porcentagem desses casos ocorrendo nas regiões Norte (35,8%) e Nordeste (23,1%). É fato que a discussão e a criação de medidas para diminuir os impactos das mudanças climáticas na gestão das águas e do saneamento no Brasil é de grande importância, no entanto, é importante nos perguntarmos também quais são as outras causas para a crise hídrica no Brasil.
Para contribuir na discussão deste tema, conversamos com Rodrigo Constante Martins, Integrante do Conselho Consultivo da Rede de Estudos Rurais, professor do Departamento de Sociologia, do Programa de Pós-graduação em Sociologia e do Programa de Pós Graduação em Ciências Ambientais da UFSCar. Rodrigo comenta que o Brasil possui uma disponibilidade hídrica diferente nas diversas regiões do país, além disso possuir estoque de água não significa que o acesso a ela será na mesma proporção. Segundo ele, diferentes grupos sociais experimentam situações de escassez de maneira muito específica. Em São Paulo, por exemplo, estado com uma população de mais de 11 milhões de pessoas de acordo com o censo do IBGE de 2022, o consumo doméstico de água representa 44% do total. A maior parte do consumo, os outros 56%, são de origem industrial (22%) e de irrigação (29%). Isso significa que a maior parte do consumo de água no estado está relacionada à produção econômica, grandes indústrias e agroindústrias. “Quem irriga em SP são as grandes produções agrícolas voltadas para a agroindústria. Pequeno produtor ou agricultura familiar no estado de SP, que basicamente vive em assentamentos rurais, não possuem sistema de irrigação, a forma do uso da água é muito precária, os sistemas de irrigação são controlados pela grande agroindústria”, destaca o professor.
É comum observarmos em campanhas de conscientização sobre o consumo da água a culpabilização do usuário doméstico, do uso familiar da água. Para Rodrigo, isso é bastante problemático, já que ignora a lógica de consumo de água das grandes empresas, as quais não possuem sequer perspectivas de mudança na forma do uso da água para a racionalização, pois a tomam como um bem econômico que é barato do ponto de vista empresarial.
Rodrigo, que coordena o Grupo de Pesquisa Ruralidades, Ambiente e Sociedade – RURAS, e investiga temas como conflitos socioambientais e a questão agrária, menciona que o uso da água no Brasil está diretamente relacionado à ocupação do território. Ele contextualiza que a ocupação do Brasil e o uso da terra se deram mediante a implementação de grandes propriedades voltadas à produção de mercadorias para a exportação, isso fez com que os usos da água nos territórios rurais fossem mediados em grande medida pela grande propriedade. Falando em grande propriedade, o latifúndio e a monocultura representam impactos ambientais significativos na degradação do solo e dos recursos naturais, o que, segundo o professor e pesquisador, afeta também as possibilidades de acesso à terra por grupos sociais marginalizados. “Quando nós observamos e acompanhamos as políticas voltadas à expansão da agricultura familiar, à formação de assentamentos de reforma agrária e à implantação de políticas para a agroecologia, o que estamos acompanhando na verdade é uma alternativa para a produção nos territórios rurais que passe distante da lógica da monocultura”. Rodrigo destaca que estas são formas mais justas e equitativas de acesso e distribuição da terra e dos recursos naturais, como a água.
O bem econômico água
A água, como todo e qualquer recurso fornecido pela natureza, também tem sido alvo do mercado internacional. Grandes empresas multinacionais que trabalham com a captação e a distribuição de água estão sendo implantadas em todo o mundo, assim como no Brasil. “Empresas vêm fazendo uso do acesso à água mediante concessões públicas para abastecimento de água e dessa maneira explorando as águas do território brasileiro como um bem econômico, com interesse em distribuir internamente e para exportação”, destaca o professor Rodrigo. Segundo ele, atualmente o Brasil ainda se encontra em uma fase de discussões sobre a regulamentação do acesso à água, discussões que são acompanhadas e influenciadas pelas multinacionais. “Há pressões para que se constitua um efetivo mercado de águas no país na medida em que o Brasil se torna internacionalmente reconhecido como um dos países que tem o maior estoque de água no planeta, embora ele esteja concentrado, grande parte das águas não está nas regiões onde há maior concentração da população”.
Além disso, para além da escassez e dos problemas de abastecimento, existem outros prejuízos que caracterizam a crise hídrica. Nos territórios rurais não existe canalização de água, o professor menciona que o acesso acontece por meio da captação em cursos d’água ou em perfurações subterrâneas com poços artesianos. No entanto, para que possa ser possível a captação, é necessário possuir a propriedade da terra, sem acesso à terra não se tem acesso à água, o que significa que a concentração do acesso à terra reflete, também, no acesso à água.
Outro aspecto importante citado pelo professor no que diz respeito aos prejuízos que compõem a crise hídrica é a falta de controle em relação aos herbicidas e agroquímicos utilizados na monocultura que poluem a água, assim como o sistema precário de estocagem de água e de fiscalização de barragens. Segundo Constante, esta precariedade está relacionada à baixa disponibilidade hídrica e a acidentes envolvendo barragens.
Águas para a vida, não para a morte
As relações de poder e dominação atravessam também o tema dos conflitos pelo acesso à água. Um dos temas trabalhados pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) é a água. Para o movimento, a água é um direito humano fundamental, a qual não deve ser mercantilizada ou se tornar uma commodity. O movimento que luta desde a década de 80 contra a privatização da água e contra a violência gerada pelos conflitos pelo acesso à água no campo, por exemplo, faz parte da organização popular que possui importância fundamental no que diz respeito à soberania da população brasileira em relação à água. O professor Rodrigo menciona que a participação popular é uma estratégia importante para retirar a discussão acerca do acesso à água apenas dos gabinetes do governo. A hidropolítica, ou a discussão sobre os conflitos que envolvem diferentes grupos sociais no acesso à água e no debate público sobre esse tema, demarca a importância do fortalecimento da participação social nestas arenas. Segundo ele, o Brasil possui uma legislação que possibilita a criação de comitês e consórcios de bacias hidrográficas com a participação da sociedade civil organizada para discutir temas relativos ao acesso e gestão da água. No entanto, esses espaços vêm sendo atacados pelo poder público. “O acesso à água condiciona essas relações sociais de poder e condiciona formas de vivência, de grupos sociais específicos, sobretudo no que concerne aos territórios rurais”, ressalta Constante.
Dentro do contexto das relações de poder que esta discussão envolve, o trabalho da professora Andréa Zhouri, Titular do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG, fundadora do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA-UFMG), analisa os efeitos causados pelo desastre da Samarco/Vale/BHP no Rio Doce, desde o rompimento da barragem de Fundão em 2015, na vida pessoal, profissional e comunitária de mulheres atingidas. Segundo texto que resume seu artigo publicado no livro “O desastre do Rio Doce e a política das afetações”, da editora Unimontes, de 2024, no Brasil, o neoextrativismo tem causado processos de desregulação ambiental e violação de direitos consagrados desde a redemocratização do país. Em seu estudo referenciado na ecologia política ecofeminista e latino-americana, “a análise aponta os limites da visão masculina que geralmente prevalece na formulação de mecanismos de governança, os quais são dificilmente orientados por uma dimensão interseccional, o que contribui para agravar os danos às mulheres”. A pesquisa assinala as múltiplas jornadas de trabalho das mulheres e o não reconhecimento de seu trabalho, como as mulheres pescadoras, registradas pela Samarco como “ajudantes de pescadores”.
Andrea e Rodrigo, junto a Luis Henrique Cunha, Integrante do Conselho Consultivo da Rede de Estudos Rurais e professor adjunto IV da Universidade Federal de Campina Grande, participaram no dia 24 de outubro da mesa “A Água e a Emergência Climática: enfoques locais, agenciamentos e perspectivas”, coordenada pelo professor Roberto de Sousa Miranda, Diretor Tesoureiro da Rede e Professor da Universidade Federal do Agreste de Pernambuco, durante o 48º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), realizado na Unicamp. Durante a mesa, que foi fruto da iniciativa de pesquisadores associados à Rede de Estudos Rurais, Andréa Zhouri (ABA/UFMG) abordou o caso dos atingidos pelo rompimento da Barragem de Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana (MG), destacando a perda da autonomia das mulheres e de renda, bem como, o limite de acesso à água; Luis Henrique Cunha (Rede/UFCG), analisou o mercado de compras governamentais de água (carro-pipa), enfatizando as desigualdades de acesso à água e que a “crise hídrica”, na verdade, é uma crise dos sistemas públicos de abastecimento de água; e Rodrigo Constante Martins (Rede/UFSCar), tratou dos Comitês de Bacia do estado de São Paulo, mostrando como o arranjo institucional fortalece o controle dos setores sucroalcooleiro e citricultor sobre as políticas hídricas e limita a participação de agricultores familiares e indígenas.
Por Julia Saggioratto, assessoria de comunicação, e contribuição da coordenação da Rede de Estudos Rurais.