
Em Paraíso do Sul (RS), famílias camponesas mostram que a agroecologia é possível quando há cooperação, resistência e cuidado com a terra.
Um pé de manga pode levar até oito anos para produzir frutos. A mangueira possui uma copa bastante densa, coberta por folhas e galhos, característica que oferece abrigo aos animais e uma boa sombra para acolher pessoas e sonhos. Talvez nem todo pé de manga possa resguardar sonhos, mas em Paraíso do Sul (RS) isso foi possível. Para quem não entendeu nada, comecemos do início, antes do pé de manga ganhar papel de destaque neste ensaio.
Em 25 de maio celebramos o Dia dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais, data que foi decretada pela lei nº 4.338, de 1º de junho de 1964. A matéria do mês de maio da Rede de Estudos Rurais foi dedicada a tratar deste tema, com atenção especial para a agricultura familiar. Para compreender melhor o contexto sobre o qual nos dedicamos a abordar, encontramos dados importantes no Atlas do Espaço Rural Brasileiro, produzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que analisa resultados do Censo Agroprecuário 2017, além de dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a Fundação Nacional do Índio (Funai) e outros.
Informações deste documento definem a agricultura familiar como um sistema produtivo que, além de permitir a reprodução social da família no campo ou na cidade, é responsável por transmitir memórias e práticas culturais, materiais e simbólicas. Além disso, destaca que esta forma de organização produtiva confere às famílias rurais “a capacidade de elaborar estratégias específicas de resistência frente às dinâmicas econômicas hegemônicas”. No entanto, a diversidade e o dinamismo econômico e social característicos da agricultura familiar ainda carecem de estudos e reconhecimento das políticas públicas.
a geografia da agricultura familiar no Brasil passa por uma diversidade de contextos regionais, abrigando um universo social heterogêneo que abrange tanto os pequenos agricultores do sul do Brasil, herdeiros da “policultura colonial” dos migrantes europeus do Século XIX, quanto os ribeirinhos do ambiente fluvial da Amazônia até aqueles situados no agreste nordestino, historicamente localizados na proximidade da monocultura da cana-de-açúcar (ATLAS…, 2011, p. 114 apud ATLAS…, 2020, p. 293).
O Atlas menciona que os saberes mantidos por estas famílias favorecem a perpetuação de práticas agrícolas que respeitam o meio ambiente, “legando à agricultura familiar um importante papel na preservação ambiental”. Em 2017, a maioria dos estabelecimentos agropecuários do Brasil foram classificados como de agricultura familiar, 3.897.408 dos 5.073.324 estabelecimentos agropecuários do País, o que corresponde a 76,8% do total de estabelecimentos, os quais ocupam, no entanto, 23% do total da área dedicada a atividades agropecuárias. Apesar de não ser realidade absoluta em todos os estabelecimentos de agricultura familiar, muitos ainda buscam manter sistemas diversificados e utilizar técnicas de manejo adequadas.

No entanto, sistemas agroalimentares convencionais ainda são os que mais efeitos negativos geram nos sistemas naturais, perpetrando um modelo de agricultura que explora intensivamente os recursos naturais de forma insustentável, causando danos ao meio ambiente e à sociedade. De acordo com dados do MapBiomas Alerta o Brasil perdeu, nos últimos seis anos, 9.880.551 ha de vegetação nativa com mais de 82,9% da área desmatada nos biomas Amazônia (30,4%) e Cerrado (52,5%) em 2024.
Apesar da diminuição em mais de 30% do desmatamento no Brasil em comparação com 2023, na Amazônia foram perdidos 1.034,8 ha por dia, ou 43,1 ha por hora, o que equivale a cerca de 7 árvores por segundo. O principal causador da perda de vegetação nativa no Brasil segue sendo a agropecuária, associada a mais de 97% do desmatamento. A análise do MapBiomas destaca ainda que mais de 93% da área desmatada no Brasil em 2024 teve pelo menos um indício de irregularidade.

Ainda no mês de maio, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei 2159/2021, conhecido como PL da Devastação, que estabelece um novo marco para o licenciamento ambiental no Brasil. O projeto altera o processo de licenciamento ambiental no país, permitindo que empreendimentos obtenham licenças apenas com base na autodeclaração do empreendedor, sem necessidade de análises técnicas prévias, com exceção apenas de casos classificados como de “alto risco ambiental”. Reportagem do Repórter Brasil menciona que especialistas alertam que o PL “compromete a prevenção de danos ambientais e enfraquece a capacidade de fiscalização dos órgãos competentes”.
No domingo (1º/06) foram realizados atos em diversos municípios e capitais do Brasil organizados por mais de 200 organizações sociais, ambientais e populares contra o PL da Devastação, que agora volta para a Câmara dos Deputados e, se aprovado, vai para sanção do presidente Lula (PT).
Sinais para outros caminhos possíveis
Muitas famílias de pequenos agricultores seguem realizando uma agricultura em harmonia com a natureza. Em Paraíso do Sul (RS) nove famílias de pequenos agricultores se reuniram e criaram o Grupo FloreSer Agroecológico, realizando um trabalho coletivo de produção de alimentos e relações saudáveis. Rosiéle Cristiane Lüdtke, Tecnóloga em Agropecuária pela UERGS, Mestre em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável pela UFFS, camponesa e militante do Movimento dos Pequenos Agricultores, que também integra o grupo, conversou com a gente para contar sobre a experiência agroecológica realizada no pequeno município localizado ao centro do Rio Grande do Sul.
Rosiéle, que plantou fumo até 2008, mudou o direcionamento de seu trabalho após finalizar sua graduação. Neste período ela realizou a reconversão na sua propriedade, transformando áreas agrícolas que antes seguiam o modelo convencional, geralmente com uso intensivo de produtos químicos e técnicas que degradam o solo, para a produção de alimento já inserida nos princípios da agroecologia. Nesta mesma época a agricultora iniciou suas atividades junto com Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) na Assistência Técnica e Extensão Rural que a organização desenvolvia a partir de suas cooperativas de produção. “Todos os projetos foram voltados à diversificação da cultura do tabaco, na produção agroecológica, ATER agroecologia e ATER sementes crioulas”, relembra Rosiéle. Ela comenta que buscavam incentivar que as famílias fizessem o oposto do que as indústrias de tabaco estimulavam, que seria focar apenas na produção de fumo e comprar a alimentação de fora. “Nós fazíamos o contrário, [dizíamos]: ‘não, voltem a plantar o feijão, porque se não sobra o dinheiro do fumo, vocês têm feijão para comer’”, destaca. Além das ATER, Rosiéle e seu companheiro coordenavam o MPA em sua região, trabalhando com diversas políticas públicas para comercializar alimentos, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), Programas de Moradia e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

O Movimento dos Pequenos Agricultores, organização que compõe a Via Campesina, surgiu na década de 1990 em um momento em que a luta camponesa recobrava suas pautas após o bloqueio das lutas populares durante a Ditadura Militar. Entre as principais diretrizes do movimento, está a reprodução e a ampliação do campesinato, defendendo um novo modelo de desenvolvimento do campo, o Plano Camponês. A Reforma Agrária e ocupação popular do território, a agroecologia camponesa e novas relações sociais que superem o capitalismo e o patriarcado são temáticas que compõem o Plano Componês, dentre várias outras, as quais foram pensadas coletivamente.
A partir do golpe em 2016 com o corte em diversas políticas públicas, Rosiéle e seu companheiro perceberam que sem os recursos de políticas públicas teriam que incidir com mais força na produção para garantir o sustento. “A gente comprou uma terra, [pois] lá na terra do pai, onde a gente morava, era cercada de veneno, então era muito difícil, a gente passava muito trabalho com a deriva dos agrotóxicos”, relata a camponesa. A terra que compraram e que vivem atualmente em Paraíso do Sul possui muita mata, agroecológica por natureza, como comenta Rosiéle: “não precisava construir barreira vegetal, era só produzir”.

No entanto, apesar deste aumento na produção de alimentos saudáveis, Rosiéle e seu companheiro, assim como outras famílias que participaram das ATER e também aumentaram sua produção, sentiam dificuldade na comercialização dos produtos. Começaram, então, a participar de diversas feiras na região. De feira em feira o grupo foi se formando até que em setembro de 2017, na Feira da Primavera, realizaram a reunião para criação do grupo e elaboração do regimento interno.
Com uma carretinha de feira, caixas, barracas e uma mesa, embaixo de um pé de manga, o grupo iniciou a comercialização dos produtos e, logo em seguida, o processo de certificação orgânica. De acordo com Rosiéle, o grupo se reuniu com o intuito de realizar o debate sobre o modelo de produção de alimentos que as famílias realizavam, de modo a realizar a produção e a comercialização dos alimentos de forma coletiva. Toda sexta-feira as nove famílias se encontram para reunir a produção da semana que será comercializada por uma das famílias, definida por escala em reunião mensal. No sábado a família vende na feira, na sua escala, os produtos de todas as famílias, diminuindo os custos de deslocamentos e proporcionando mais tempo de trabalho na terra, lazer ou descanso para as outras famílias.
Rosiéle, que atualmente realiza uma especialização em Educação Popular em Saúde pela Fiocruz, menciona que o grupo realiza reuniões e encontros de formação para fortalecer a prática agroecológica e pensar em como fazer com que os alimentos cheguem na cidade com preço acessível. “Nosso custo maior de produção é a mão de obra, porque a gente tem produzido nossos insumos”. O processo coletivo garante uma imensa variedade de produtos vendidos pelo grupo e a possibilidade de colocar a agroecologia em prática de outras formas, para além da produção, como, também nas relações. “A construção de novas relações com a natureza, e entre nós, com relações de confiança, de respeito. Então, o nosso grupo é uma grande família”.

As práticas das famílias do grupo deixam evidente que outras formas de produção de alimentos e de relações humanas são possíveis. “A gente trabalha para satisfazer as nossas necessidades, não para acumular, e, também, para se relacionar, não só entre nós, mas com a sociedade de uma maneira harmoniosa”, destaca Rosiéle. Ela menciona, ainda, que se considera privilegiada por estar neste coletivo que realiza este trabalho de forma organizada e em permanente processo de formação e troca de saberes: “Essa movimentação e essa capacidade que o ser camponês, que o trabalhador da roça tem, ou a trabalhadora da roça tem, de melhorar o seu lugar, e pensar nas estratégias, nesse processo dialógico, dialético, de sempre estar debatendo, conversando”, salienta a militante do MPA.
Por fim, Rosiéle, que mora num lugar chamado Recanto Fonte da Vida, ressalta que as porteiras da sua propriedade estão abertas para que outras pessoas conheçam esta experiência, muitas vezes, invisibilizada. “O povo da cidade também tem responsabilidade de procurar as experiências, dar visibilidade, se aproximar cada vez mais dos camponeses que de fato cuidam, protegem e alimentam esse país”.
Por Julia Saggioratto, assessoria de comunicação da Rede de Estudos Rurais.
Links:
ATLAS do espaço rural brasileiro (IBGE, 2020) https://www.ibge.gov.br/geociencias/atlas/tematicos/16362-atlas-do-espaco-rural-brasileiro.html
Relatório Anual de Desmatamento 2024 (RAD2024) https://alerta.mapbiomas.org/wp-content/uploads/sites/17/2025/05/RAD2024_15.05.pdf
Reportagem Repórter Brasil: ‘PL da Devastação’ aprovado no Senado: o que muda no licenciamento ambiental?
PL da Devastação:
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/148785
























