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A sombra que permanece: a fome no Brasil e no mundo

A sombra que permanece: a fome no Brasil e no mundo 1

Entrevista com Mariana Pedron Macário, advogada que lidera a equipe de advocacy, incidências e políticas públicas da Ação da Cidadania

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Apenas 4 entre 10 famílias conseguem acesso pleno à alimentação, lares comandados por mulheres pretas e pardas tem a fome ainda mais evidente (Foto: Sara Gehren/Ação da Cidadania)

A fome tem cor, gênero, classe social e localização, é o que revelam os dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, Pesquisa realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), executada pelo Instituto Vox Populi, e com apoio e parceria de Ação da Cidadania, ActionAid, Fundação Friedrich Ebert Brasil, Ibirapitanga, Oxfam Brasil e Sesc São Paulo. No Brasil e no mundo a fome ressurgiu nos últimos anos, assombrando milhões de pessoas que, em boa parte, haviam alcançado algum grau de segurança alimentar por um período não tão distante.

De acordo com o Inquérito, apenas 4 entre 10 famílias conseguem acesso pleno à alimentação e 33,1 milhões de pessoas não tinham o que comer na época da coleta dos dados. “Comparando com o 1º Inquérito Nacional da Rede PENSSAN, de 2020, em 2021/2022, a fome saltou de 10,4% para 18,1% entre os lares comandados por pretos e pardos”, destaca a pesquisa. Lares chefiados por mulheres a fome aumentou de 11,2% para 19,3%, e onde vivem crianças menores de 10 anos a fome dobrou de 2020 para 2022.

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Durante a pandemia, sem alimento, a população entrou em filas de ossos e carne rejeitados por supermercados (Foto: Domingos Peixoto/Agência o Globo)

A pesquisa ainda mostrou que mais da metade da população brasileira, 58,7%, convivia com a insegurança alimentar em algum grau, seja leve, moderado ou grave, dado que expõe que regredimos a níveis de fome iguais aos da década de 1990.  Importante destacar que estes dados refletem a situação em que o Brasil se encontrava entre novembro de 2021 e abril de 2022, período de realização da pesquisa. Atualmente, a partir da implementação de novas políticas sociais pelo Governo Federal, a fome e a miséria no Brasil tiveram uma baixa. A edição 2023 do relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo, realizado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), demonstrou que a fome avança, também, ao redor do mundo, em que cerca de 735 milhões de pessoas vivem em insegurança alimentar.

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Entre 2021 e 2022 mais da metade da população brasileira, 58,7%, convivia com a insegurança alimentar em algum grau, seja leve, moderado ou grave, dado que expõe que regredimos a níveis de fome iguais aos da década de 1990 (Foto: Scarlett Rocha)

A edição 2024 do Relatório das Nações Unidas sobre o Estado da Insegurança Alimentar Mundial (SOFI 2024), produzido conjuntamente por agências da ONU como FAO, FIDA, UNICEF, PMA e OMS, que atualiza anualmente o “Mapa da Fome”, foi lançado no mesmo dia da Reunião Ministerial da Força Tarefa do G20, no dia 24 de julho, momento da aprovação da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, e mostrou que a insegurança alimentar severa caiu 85% no Brasil em 2023. “O relatório SOFI destaca avanços importantes no combate à fome no Brasil. Mostra que a insegurança alimentar severa caiu de 8,5%, no triênio 2020-2022, para 6,6%, no período 2021-2023, o que corresponde a uma redução de 18,3 milhões para 14,3 milhões de brasileiros nesse grau de insegurança alimentar. Em números absolutos, quatro milhões saíram da insegurança alimentar severa na comparação entre os dois períodos de três anos”, de acordo com matéria da Secretaria de Comunicação Social do Governo Federal. A matéria ainda ressalta que o Brasil havia saído do “Mapa da Fome” no ano de 2014, mantendo a posição até 2018. Entre 2019 e 2022 crescia a pobreza, a extrema pobreza e a insegurança alimentar e nutricional, voltando ao Mapa da Fome de 2019 até 2022*.

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Mariana Pedron Macário, advogada que lidera a equipe de advocacy, incidências e políticas públicas da Ação da Cidadania (Foto: Ricardo Durand/ @durand_fotografia)

Em entrevista à Rede de Estudos Rurais, a advogada Mariana Pedron Macário, que lidera a equipe de advocacy, incidências e políticas públicas da Ação da Cidadania, organização fundada há 30 anos pelo sociólogo e ativista Herbert de Souza, conhecido como Betinho, comenta que nos últimos anos, após o Brasil voltar ao Mapa da Fome, a entidade viu a necessidade de investir mais esforço em ações estruturantes de estudos, parcerias e na luta por medidas e políticas públicas visando combater a fome. A Ação da Cidadania, a qual mobilizou a sociedade brasileira a se indignar e a desnaturalizar a fome, ficou nacionalmente conhecida pelas ações emergenciais e assistenciais junto a milhares de pessoas que se encontravam abaixo da linha da pobreza, tendo como principal eixo de atuação, segundo o site da organização, “uma extensa rede de mobilização formada por comitês locais da sociedade civil organizada, em sua maioria compostos por lideranças comunitárias, mas com participação de todos os setores sociais”.

Mariana destaca que uma das falas memoráveis de Betinho era de que “a alma da fome é política”. Neste sentido, a advogada ressalta que é necessário que lembremos que a fome não é um fenômeno descolado dos mecanismos e das estruturas sistêmicas que produzem desigualdade. “Ela não é um acidente. No passado existia uma visão bastante corrente de que era uma fatalidade, a questão da seca, como se fosse algo que não temos nenhum controle. A gente vê de outra forma”. Segundo Mariana, de maneira genérica, as causas da fome seguem, normalmente, as classes e os grupos econômicos mais poderosos do país, voltados ao setor financeiro, à indústria e ao agronegócio, que possuem influência nas tomadas de decisão nos espaços políticos. “São os grupos que têm mais condição de fazer valer os seus privilégios, as suas concessões”.

 

A vergonha da fome

A fome possui causas e, por trás dela, existem responsáveis. No entanto, quem sente vergonha pela fome é, justamente, quem a sente na pele. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar menciona também que das famílias entrevistadas, 8,2% relataram que sentiam vergonha, tristeza ou constrangimento por utilizar meios que ferem a dignidade para conseguir ter comida na mesa, “15,9 milhões de pessoas no Brasil, que foram obrigadas a usar de meios social e humanamente inaceitáveis, para obtenção de alimentos”. Além de meios considerados “indignos”, muitas famílias relataram vender seus bens ou equipamentos de trabalho para poder comprar comida, mais de 48%, e mais da metade dos entrevistados relataram ter parado de estudar para poder contribuir com a renda familiar.

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Em lares com crianças menores de 10 anos a fome dobrou de 2020 para 2022 (Foto: Thais Alvarenga/Ação da Cidadania)

E por que temos fome em um país com as condições para produzir alimento suficiente para a população? E mais, nas áreas rurais, espaço onde a comida é produzida, a necessidade de alimento é evidente e impactante. Ainda segundo o Inquérito, nos lares de agricultores familiares e pequenos produtores a fome atingiu 21,8%. “Nas áreas rurais, a insegurança alimentar (em todos os níveis) esteve presente em mais de 60% dos domicílios. Destes, 18,6% das famílias convivem com a insegurança alimentar grave (fome), valor maior do que a média nacional”. De acordo com Mariana Macário, esta é uma das barreiras ao acesso aos alimentos, nem mesmo quem produz tem, muitas vezes, acesso a alimentos saudáveis e em quantidade suficiente.  “Tem pessoas que trabalham na produção de frutas e não conseguem consumir uma fruta, não é porque a fruta não está perto, é porque a fruta não é para aquela pessoa”, destacando que o mesmo acontece com outros alimentos. 

Macário ainda relaciona esta a inúmeras outras barreiras no acesso aos alimentos. A pobreza e a miséria, em um país de extrema desigualdade como o Brasil, refletem no direito à alimentação e nutrição adequada, assim como a concentração de terras, que afeta o acesso à terra, e a destinação de grande parte das terras cultiváveis para a produção de commodities e ultraprocessados, alimentos que parecem comida, mas não são. Referente a isso, ela ressalta o uso exacerbado de agrotóxicos, que contaminam os alimentos, o solo e os trabalhadores envolvidos no cultivo. Ela ainda aponta outros obstáculos à nutrição adequada, como o desperdício de alimentos, a logística da cadeia produtiva, os eventos severos do clima, que vêm afetando cada vez mais o cultivo de alimentos, o reflexo de conflitos no acesso à alimentação, a soberania alimentar, relativo ao modo como o país lida com as flutuações dos fluxos internacionais de distribuição de compra de produtos, atuando para manter os alimentos acessíveis, e, por fim, o próprio sistema de produção capitalista, “que é extremamente desigual e predatório da natureza, isso é indissociável dos nossos sistemas alimentares, da sua sustentabilidade, da sua perpetuação”, finaliza. 

 

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Encontro internacional aberto da força tarefa para a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, realizado dia 24/07, no Rio de Janeiro (Foto: Reprodução/G20)

Iniciativa brasileira no combate à fome e a pobreza

O que vivemos atualmente no Brasil, ainda de acordo com a advogada Mariana Macário, vem sendo chamada de policrise, ou seja, múltiplas crises em diversos âmbitos atuando em conjunto e colocando em risco o acesso a alimentos saudáveis. No sentido de promover programas que cheguem à causa da fome, e não apenas programas pontuais que possuem impacto restrito, o Brasil, na presidência do G20 2024, propôs a Força-tarefa para a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. De acordo com o site do G20, o objetivo da Força Tarefa é “estabelecer uma Aliança Global que irá reunir recursos e conhecimentos para a implementação de políticas públicas e tecnologias sociais comprovadamente eficazes na redução da fome e da pobreza no mundo”. 

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Daniel Souza, filho do sociólogo Betinho, Lula e Josué Fernando de Castro em encontro do G20 no RJ (Foto: Ricardo Stuckert)

No dia 24 de julho, em Reunião Ministerial da Força Tarefa no Rio de Janeiro, os quatro Documentos Constitutivos da Aliança foram aprovados, abrindo a possibilidade de adesão à Aliança para os países membros do G20 e, também, para outros países interessados, assim como para organizações internacionais, bancos multilaterais de desenvolvimento, centros de conhecimento e filantropias. O Brasil e Bangladesh foram os dois primeiros países a aderir, seguidos pelo Chile. Outros países declararam apoio à Aliança, mas a adesão dos membros se materializa apenas a partir da assinatura da Declaração de Compromisso, a qual inclui diretrizes gerais com os objetivos e desenho da Aliança, o que apenas os três países mencionados fizeram até o momento.

Em novembro, durante a Cúpula dos Líderes do G20, a Aliança será lançada oficialmente. Durante o encontro do G20 no RJ no dia 24 de julho, momento no qual a Aliança foi aprovada pelos representantes de países do G20, mencionou-se que após o G20 a iniciativa seguirá operando de forma independente como uma plataforma global autônoma, tendo uma sede no Brasil e outra em Roma.

Para Mariana e para a Ação da Cidadania, a proposta brasileira a partir da união dos três pilares propostos pela Aliança, unindo uma cesta de políticas públicas, financiamento e assistência técnica/tecnologia, tem sido vista como uma grande novidade: “um ganho que o Brasil esteja liderando isso, que o governo Lula tomou a frente deste debate. Os números da fome no mundo infelizmente não retrocederam, tivemos uma melhoria na América Latina puxada pelo Brasil, mas uma estagnação na Ásia e uma piora na África”. 

 

Pilares da Aliança 

O primeiro pilar inclui uma cesta de políticas públicas que sejam comprovadamente eficazes para combater a fome e a miséria e que vão estar à disposição para os países que precisem delas. “Uma série de países, até organizações da sociedade civil, estão fazendo sugestões de políticas públicas que tenham esse caráter”, menciona Mariana. O segundo pilar, do financiamento, unifica vários fundos e mecanismos já existentes mas que hoje se encontram fragmentados. “Existe recurso para combater a fome, o problema é como acessar esses recursos, o problema é quem acessa eles, com quais taxas de juros, com quais contrapartidas, com qual governança”, destaca Mariana, que ainda menciona que a Força Tarefa tem esse aspecto de dar consistência, unir e incentivar que esses recursos sejam utilizados da melhor forma. O terceiro pilar, da assistência técnica e conhecimento, prevê a transferência de tecnologia entre países.

Mariana ressalta, ainda, que devido às ameaças aos sistemas alimentares se faz urgente pensarmos a sustentabilidade, a transição energética e dos sistemas alimentares e na justiça climática, “para que a gente tenha comida de verdade que não destrói o planeta, que não desapropria as pessoas, que não explore as pessoas, isso tudo está presente nas premissas da aliança”. 

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Encontro Preparatório da Cúpula Social do G20, realizado nesta terça (20), no Rio de Janeiro, reuniu mais de mil representantes de movimentos sociais e organizações da sociedade civil (Foto: Audiovisual G20)

Para ela, a elaboração da Aliança parte de uma visão complexa dos sistemas alimentares. No entanto, ainda é necessário que se fale de forma mais explícita e profunda sobre como o atual sistema econômico capitalista neoliberal de base financeira é produtor de desigualdades profundas, e não é capaz de produzir um mundo justo e igual para todos. Segundo a advogada, a Ação da Cidadania também tem como parte de suas diretrizes o questionamento de que ao falarmos sobre alimentos é necessário falar, também, sobre justiça tributária, sobre a relação entre os países do Sul Global e do Norte, e sobre as desigualdades que não são acidentais, que são profundas e sistêmicas.  “Não é que o mundo está quebrado, é que ele está funcionando para algumas pessoas”. 

Finalmente, ela destaca que apesar de não ver algumas discussões sendo realizadas de forma explícita, como a busca pela origem de desigualdades econômicas persistentes, as quais são citadas como causas da fome e da miséria nos documentos da Aliança Global, se sente animada com as propostas e com as possibilidades deste mecanismo que está sendo criado. “Se a gente sabe que elas existem e acontecem no mundo todo e são persistentes, então precisamos dizer o nome delas, precisamos tirar essa nuvem. (…) tenho convicção que é nosso papel enquanto sociedade civil, como organizações e movimentos sociais que lutamos pela igualdade econômica, pela dignidade, por um mundo justo, saudável, sem machismo, sem racismo, dizer o nome desse sistema”. 

 

Por Julia Saggioratto, Assessoria de comunicação Rede de Estudos Rurais, com informações da Rede PENSSAN, Ação da Cidadania, Conselho Federal de Nutrição, Agência Gov e G20.

*FONTE DOS DADOS – Os dados extraídos do Relatório da ONU sobre Insegurança Alimentar Mundial (SOFI2024) não são publicados em separado, com recorte anual. A FAO, excepcionalmente, informou os números individualizados de 2023 ao Governo Federal brasileiro.


Links importantes:

https://pesquisassan.net.br/2o-inquerito-nacional-sobre-inseguranca-alimentar-no-contexto-da-pandemia-da-covid-19-no-brasil/

https://www.acaodacidadania.org.br/ 

https://olheparaafome.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Relatorio-II-VIGISAN-2022.pdf 

https://www.cfn.org.br/index.php/noticias/aumento-da-fome-e-inseguranca-alimentar-no-brasil-relatorio-da-onu-revela-dados-preocupantes/ 

https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/g20-brasil 

https://www.g20.org/pt-br/trilhas/trilha-de-sherpas/fome-e-pobreza 

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