Entrevista com Sandra Maria Chaves dos Santos, coordenadora da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
No mês de agosto, dando continuidade à série de matérias que vêm sendo produzidas pela Rede de Estudos Rurais com o intuito de trazer à superfície discussões importantes a serem feitas na conjuntura atual do Brasil e do contexto Rural, entrevistamos Mariana Pedron Macário, advogada que lidera a equipe de advocacy, incidências e políticas públicas da Ação da Cidadania. Conversamos com Mariana sobre o contexto da fome e da produção de alimentos no Brasil e as perspectivas do G20 com a criação da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, iniciativa liderada pelo Brasil na presidência do Grupo.
Nesta edição nos debruçamos novamente sobre este tema que permanece em pauta a nível de país e se mantém presente historicamente de forma consistente na vida do povo brasileiro, porém, trazendo à tona o trabalho de pessoas que buscam, a partir da pesquisa e da produção de conhecimento, alimentar a possibilidade de mudança. A fome, infelizmente, não é novidade, ela tem suas origens no Brasil a partir da colonização e da formação político-econômica do país, formação estruturada a partir da escravidão e da desigualdade social. Em 2004 o Brasil possuía em torno de 64% de domicílios vivendo em contexto de segurança alimentar e, em contrapartida, 9,5% em insegurança alimentar grave, situação compatível com a fome. Já em 2013 chegamos a 77% de domicílios em segurança alimentar, uma melhora considerável. Neste ano, a insegurança alimentar grave caía para cerca 4%, por isso o Brasil saiu do Mapa da Fome em 2014. No entanto, em 2017, após a crise política com o Impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016, a população com segurança alimentar caiu para 63%. Antes mesmo do início da pandemia o Brasil já se encontrava em uma curva decrescente de segurança alimentar, com o consequente aumento da insegurança alimentar grave. Em 2019 apenas 44,8% dos domicílios se encontravam em segurança alimentar.
Além de voltar ao Mapa da Fome, a partir de 2017 o Brasil se viu em um cenário de crescente negacionismo e obscurantismo, o que se viu ainda mais evidente no auge da pandemia de Covid-19 com a negação da ciência e da efetividade das vacinas. Os dados acima só foram possíveis de serem de conhecimento público a partir da iniciativa de pesquisadores em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional de todo o Brasil que em 2010, a partir do Conselho Nacional de Segurança Alimentar, decidiram pensar como poderiam contribuir com aquele momento do país. De 2010 até 2019, diversos encontros foram realizados no sentido de fomentar a pesquisa nessa área, contribuir para a formação de uma agenda de pesquisa que pudesse incidir junto às agências de fomento, e articular grupos de pesquisa para aperfeiçoar a atuação dos pesquisadores. Em 2019 finalmente o grupo se consolida como uma organização da sociedade civil, criando neste momento a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, a Rede Penssan, como destaca a atual coordenadora da Rede, Sandra Maria Chaves dos Santos, nutricionista e professora da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia: “tomamos a decisão de assumir uma pesquisa cidadã, comprometida com as necessidades da população, não é uma pesquisa apenas para a cidadania, mas escutando o cidadão, com o cidadão, fazendo dele também um pesquisador”.
Desde então a Rede vem se consolidando e ampliando sua atuação com cerca de 300 filiados em todo o país, contribuindo com o conhecimento sobre o Brasil e com a possibilidade de se criarem medidas e políticas públicas para incidir sobre a realidade da população. Neste ano o grupo realizou o 1º Encontro de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional na Amazônia Legal em agosto, e mais recentemente, entre os dias 10 e 13 setembro, realizaram o VI Encontro Nacional de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, o maior encontro até então, com 600 inscritos e 300 trabalhos aprovados.
De acordo com Sandra, em 2020, com a pandemia e a paralisia da pesquisa pelo governo de Jair Bolsonaro, não havia perspectiva de dar continuidade às pesquisas que vinham sendo realizadas desde 2004. Neste sentido, a Rede decidiu realizar o “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil”, com apoio do Instituto Ibirapitanga e parceria de ActionAid Brasil, FES-Brasil e Oxfam Brasil. A pesquisa foi feita por amostra regional nas macro regiões, e a partir dela foi identificado um crescimento da insegurança alimentar, no entanto o governo à época não reconheceu o resultado da pesquisa e não se mobilizou para combater essa realidade. Em 2021 a Rede volta a fazer a pesquisa, desta vez com amostra por estados, e neste momento se revelou o crescimento extremamente relevante da insegurança alimentar, que chegou a alcançar 15,5% dos lares brasileiros, com cerca de 33 milhões de brasileiros passando fome. A partir da realização dessas pesquisas e com o trabalho de divulgação que foi feito desses resultados para incidir tanto no cenário político quanto nos movimentos sociais, a Rede ganhou mais visibilidade, mais responsabilidade e um certo protagonismo no diagnóstico da situação da segurança alimentar.
A pesquisadora Sandra menciona que em dezembro de 2022 o IBGE identificou uma redução extremamente importante na insegurança alimentar grave, com menos de 24 milhões de brasileiros nesta situação, atualmente esse número reduziu ainda mais, para cerca de 9 milhões de pessoas passando fome em todo o país. “É uma redução escandalosa, resultado de um conjunto de políticas públicas, redução da taxa de desocupação no país, melhoria e ampliação dos programas de transferência de renda, de créditos, de qualificação do programa de aquisição de alimentos da agricultura familiar. Esse conjunto de ações vai modificando o cenário de fome no país”. Com a mudança de governo e com a volta do combate à fome no Brasil, além do retorno das pesquisas nacionais realizadas pelo IBGE, a Rede decidiu se dedicar a fazer pesquisa com grupos que não são alcançados pelas pesquisas populacionais de grande porte, como em assentamentos rurais, com a população negra de periferia urbana, indígenas, quilombolas, população LGBTQIAPN+ e população em situação de rua, por exemplo. “Essa mostra domiciliar não alcança alguns dos grupos vulnerabilizados no país, [estes grupos] estão entrando no nosso radar de pesquisas, já estamos testando metodologias, realizando pesquisas nesse caminho”, comenta Sandra.
Ainda segundo Sandra, existe uma parcela da população, que soma em torno de 5% dos domicílios brasileiros, que permanece historicamente em insegurança alimentar. “Precisamos reconhecer quem são, como e onde vivem essas pessoas, que estão sempre lá, porque nunca chegamos em menos de 5%”, destaca. Ela comenta que a Rede atualmente está trabalhando em um projeto audacioso de realizar uma enquete sobre segurança alimentar com a população indígena com representação nacional, com todas as etnias e em todas as regiões do país, “um projeto bastante grande, complexo, mas extremamente relevante por tudo que temos acompanhado do sofrimento dos povos originários no nosso país”, ressalta a nutricionista.
Ela ainda finaliza destacando a introdução da temática climática no último encontro nacional da Rede Penssan e a participação da Rede no G20 com objetivo de pautar a insegurança alimentar e as questões climáticas dentro da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Além disso, até a realização do próximo encontro nacional em 2027, a Rede pretende realizar atividades para manter o tema em discussão.
Encontro entre Redes
A temática da soberania e segurança alimentar e nutricional é extremamente multidisciplinar, é um campo que reúne pesquisadores e estudiosos de várias áreas disciplinares, como comenta a coordenadora da Rede Penssan: “na Rede sempre tivemos pessoas da sociologia rural, do desenvolvimento, da agroecologia, da nutrição, sempre trabalhamos a Rede para esse diálogo com outras Redes”. Segundo ela, a composição da Rede Penssan a partir de profissionais de diferentes inserções, dá ao grupo uma capacidade de capilarizar o tema e escutar demandas de outros campos disciplinares. Ela finaliza mencionando que o Brasil está se organizando e se qualificando para fazer um enfrentamento real e efetivo da fome, o que representa uma oportunidade para pesquisadores, das diferentes esferas de estudo, identificarem em conjunto soluções para os problemas que afetam o Brasil há tantos anos. “A pesquisa cidadã tem uma oportunidade ímpar, temos oportunidades de financiamento que estão acontecendo, é um momento muito importante para aqueles que atuam na área para se organizar, entender as demandas da sociedade, e se qualificarem para produzir melhores resultados para a sociedade brasileira”.
Para a coordenação da Rede de Estudos Rurais, o diálogo com a Rede Penssan se consolida a partir da proximidade dos temas discutidos pelos dois grupos, já que a fome tem índices ainda mais alarmantes nas áreas rurais brasileiras. Além disso, os problemas ambientais gerados pelo modo de produção intensiva do agronegócio brasileiro, os altos índices de uso dos agrotóxicos, entre outros, são pauta das pesquisas da Rede de Estudos Rurais, mas também da Rede Penssan. Neste sentido, a aproximação entre essas duas Redes, o diálogo entre seus pesquisadores, representa um importante movimento nos estudos que possam revelar estratégias para mitigar problemas sociais advindos da acumulação do sistema econômico capitalista que gera desigualdade, pobreza, fome, insegurança alimentar, no campo e na cidade. Uma primeira iniciativa nesse sentido ocorreu no V ENPSSAN, em 2022, quando foi realizada uma oficina autogestionada tratando da articulação entre Redes, em que representantes de ambas Redes estiveram presentes, assim como representantes de outros grupos de pesquisadores. Desde então, diálogos têm sido realizados, e nota-se que pesquisadores da Rede de Estudos Rurais são, também, associados na Rede Penssan e vice-versa. Continuar fortalecendo ainda mais esse encontro entre Redes é fundamental para a geração de pesquisa cidadã comprometida com a população brasileira e pela busca de uma sociedade mais igualitária, saudável e sustentável.
Por Julia Saggioratto, assessoria de comunicação, e contribuição da coordenação da Rede de Estudos Rurais.